Máscara reutilizada e capa de chuva: o que vivem enfermeiros do Santa Marcelina

Profissionais do Hospital da região Leste de São Paulo denunciam risco de contaminação e atestado de 7 dias, mesmo com sintomas de Covid-19

Enfermeiros de Hospital Santa Marcelina relatam medo ao ir trabalhar
Foto: Pixabay
Enfermeiros de Hospital Santa Marcelina relatam medo ao ir trabalhar





“As condições de trabalho são péssimas”, é o que diz Regiane*, que trabalha como enfermeira no Hospital Santa Marcelina , localizado no Itaim Paulista, Zona Leste de São Paulo.

A afirmação foi feita depois de revelar que, em meio à crise da pandemia do novo coronavírus (Sars-Cov-2), capas de chuva descartáveis foram entregues para suprir a falta de capotes e trajes impermeáveis. 

No período da noite, a falta de EPIs se intensifica. “Teve uma noite em que chegamos para trabalhar e nos avisaram que só tinha equipamento para aquele período”, diz. 

O auxiliar de enfermagem Jeferson* não chegou a receber a capa de chuva, mas foi orientado a reutilizar máscaras descartáveis N95 pela Segurança do Trabalho do local. Além disso, máscaras brancas estão disponíveis a vontade, mas duram menos.

“É correto usar a branca por duas horas, mas durante o trabalho a gente transpira e o desgaste é mais rápido. Em 30 minutos precisa trocar”, explica. Ele ainda informou que os aventais e as luvas não são próprios e rasgam com facilidade.

Até a última semana, o Conselho Federal de Enfermagem (Cofen) chegou a receber mais de 4 mil denúncias por falta de equipamentos próprios . O conselho considera a falta de EPIs como principal motivo de contaminação de funcionários.

Segundo os funcionários, o hospital não justificou o motivo da falta de equipamentos. Segundo ela, uma das médicas da Comissão de Controle de Infecção Hospitalar (CCIH) disse “não ver necessidade” no uso dos capotes como proteção.

Regiane afirma que o hospital recebeu denúncias na Vigilância Sanitária feitas pelos próprios funcionários. Foi averiguado que, por ordens, os capotes foram escondidos na supervisão.

A “orientação” era de que não houvesse distribuição para enfermeiros, auxiliares e técnicos que não estivessem trabalhando diretamente com a Covid-19. “Mas quem garante que alguém não vai se contaminar lá dentro? Estamos atirando no escuro”, questiona.

Atestados de sete dias

O hospital também está lidando com um grande número de afastamentos de funcionários. Por esse motivo, os atestados médicos dados aos profissionais, mesmo com  sintomas da Covid-19 , são mais curtos.

O hospital libera o empregado, primeiramente, por sete dias - quantidade contrária à orientação oficial, que seria de 14 dias.  A orientação da Medicina do Trabalho do local é que o funcionário retorne ao fim do período para checar a necessidade de estender o atestado.

Com isso, o profissional de saúde, possivelmente infectado, precisa deixar o isolamento para comprovar ao Santa Marcelina que está doente.

Enquanto as denúncias aconteciam, Rodolfo*, enfermeiro que trabalha há bastante tempo no Santa Marcelina, estava no início de sua internação na UTI . Após uma tomografia, ele foi diagnosticado com Covid-19.

Por evitar transportes públicos e se manter em isolamento quando não está trabalhando, Rodolfo acredita que contraiu a doença enquanto trabalhava. Mesmo com os sintomas, ele recebeu do hospital um atestado inicial de sete dias, e não de 14, como dizem as orientações médicas atuais.

“No primeiro dia, tive muita febre, e no segundo veio a dor no corpo e na cabeça. Um mal estar horrível”, relata. No segundo dia de atestado, Rodolfo foi internado.

O resultado veio só depois do  sexto dia de atestado médico. Caso não tivesse realizado a testagem e não demonstrasse mais sintomas, ele poderia ter voltado ao trabalho.

O Cofen divulgou levantamento na última semana em que afirma que o Brasil possui 2,2 milhões de profissionais da enfermagem registrados em seu sistemas. Desses, 4,8 mil foram afastados nas últimas semanas em decorrência do novo coronavírus. Até o último dia 15, ocorreram 30 mortes na área da enfermagem.

Jeferson também teve contato direto com o vírus e precisou de afastamento. Devido à Covid-19, um familiar próximo do auxiliar de enfermagem faleceu. A esposa dele levou o atestado de óbito para buscar informações sobre o afastamento. Os sete dias foram recebidos por ele com estranheza.

Por fim, ele conseguiu que seu atestado fosse estendido, mas precisou ir ao hospital para a avaliação. Assim, ele descumpriu o período de 14 dias em isolamento, tempo necessário para monitorar possíveis sintomas e desenvolvimento do vírus no organismo.

Rodolfo explica que mesmo os funcionários infectados e que “já se curaram” dentro do período do atestado são pressionados a voltar ao trabalho . No caso dele, após 14 dias de atestado, o hospital chegou a dizer que se não voltasse ao trabalho teria desconto no banco de horas.

Depois de negociar, e devido ao quadro grave que havia apresentado, ele conseguiu estender o atestado médico. “Para os funcionários, não existe quarentena ”, desabafa.

O auxiliar afirma que, durante o período de internação e de manifestação dos sintomas, não conseguia comer e sentiu o organismo mais fraco. “Eu jamais aguentaria um plantão de 12 horas depois de passar dias bebendo água e comendo pãozinho”, explica.

EPIs para poucos

Na tentativa de conter a propagação do vírus pelo hospital, foi reservada uma ala especial para pacientes infectados pela doença. No entanto, enfermeiros , técnicos e auxiliares relatam que os equipamentos de proteção apropriados, como máscaras e trajes preventivos, só estão sendo distribuídos para funcionários que estão “em contato direto” com a Covid-19 , o que gera um desfalque em outros setores.

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Segundo o auxiliar de enfermagem Jeferson, outras pessoas que trabalham nos demais setores também estão expostos ao risco da mesma maneira. “Muitos diagnósticos não são corretos ao chegar. A doença não está isolada , mas espalhada pelo hospital, não dá para saber ao certo quem tem e quem não tem”, afirma.

Regiane relatou que atendeu um paciente sem diagnóstico e, no plantão seguinte, ele havia sido transferido para a área reservada para infectados pelo vírus. “Temos que ter as mesmas condições de trabalho . É um absurdo. Todos estamos sujeitos a ser vítima da Covid-19, a qualquer momento”, afirma.

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Hospital confirma denúncias

À reportagem do portal iG , o Hospital Santa Marcelina confirma atestados de sete dias e que Equipamentos de Proteção Individual ( EPIs ) são distribuídos de maneira “criteriosa”, sendo que os mais reforçados são destinados apenas à ala da Covid-19.

No entanto, nega a distribuição de capas de chuva e afirma que máscaras distribuídas são seguras. A instituição diz ainda que pacientes que tenham sintomas da doença são isolados desde a triagem.

O Santa Marcelina pertence à rede pública de saúde do estado de São Paulo e está no olho do furacão do novo coronavírus . O Santa Marcelina tinha 80% das vagas da Unidade de Terapia Intensiva (UTI) e 60% da enfermaria ocupadas por infectados pela Covid-19 até o último dia 16. Questionado, o hospital não informou o número de casos atendidos atualmente até o fechamento desta reportagem.

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Menor número de funcionários trabalhando


"Um caos". É assim que Rodolfo define a atual situação no hospital. Apesar da alta demanda de atendimento, o esquema de plantão 12x36 foi mantido, sem horas extras. O tempo é curto; a equipe também.

Regiane sabe de, ao menos, quatro funcionários afastados e infectados pela Covid-19, mas sabe que existem mais vítimas em diversos setores do Santa Marcelina.

Jeferson afirma que voltou a trabalho com medo , já que não sabe o que pode encontrar durante o expediente. Ele compara o cenário com uma guerra, em que não sabe se vai voltar vivo. “Eu coloco o que tem de material, peço proteção a Deus e faço meu serviço”, desabafa.

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Os corredores estão cheios de pessoas adoecidas, mas o número de funcionários não chega perto de um cenário normalizado. “Alguns plantões da manhã chegam a ter apenas quatro ou cinco funcionários para um hospital todo”, diz.

Os funcionários afirmam que o Santa Marcelina não tem tomado providências quanto à reposição de profissionais de enfermagem, mesmo se contratados em regime temporário. “Se os enfermeiros estão ficando doentes, alguma coisa estão fazendo de errado”, diz

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Falta de funcionários vem desde antes de Covid-19

Rodolfo, que explica ainda que há anos o hospital não repõe funcionários , o que sobrecarrega o fluxo de trabalho. A informação foi confirmada por outras pessoas que trabalham na instituição.

Segundo os relatos, estima-se que são até seis pessoas trabalhando por plantão, sendo que cada um deles equivale, em alguns cenários, a mais de dez pacientes ao mesmo tempo.

“É o enfermeiro que está diretamente em contato com o paciente, ele é o soldado. Esse esquema sobrecarrega o funcionário, ficamos sujeitos ao erro. É desumano”, explica.

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Junto às consequências da pandemia do novo coronavírus , Rodolfo explica que a situação de falta de funcionários torna a assistência ineficaz e arriscada. “O lema do hospital é proporcionar soluções de saúde com ética, qualidade e valores cristãos. Não vejo nada disso: nem ética com o paciente, nem com o funcionário”, finaliza.

Hipertensão e síndrome do pânico

Todos os dias antes do trabalho, Regiane engole quatro cápsulas de remédio para hipertensão e duas para ansiedade e síndrome do pânico. Devido ao estresse e às incertezas do dia a dia, somadas ao medo de perder o emprego, os remédios não está mais dando conta. “Estou sempre apavorada”, diz.

Por possuir comorbidades, a enfermeira faz parte do grupo de risco , o que a deixa com mais medo. Ela afirma não se sentir protegida pelo hospital, tanto pela falta de EPIs como pelo tratamento recebido diante de sua condição médica.

Ela procurou a Medicina do Trabalho e entregou uma carta que comprova seu estado de saúde e requisitou afastamento, porém o pedido foi negado. A mulher foi informada de que só poderia ser afastada caso tivesse um atestado médico .

Mesmo se Regiane for infectada pela Covid-19 , seu afastamento fica a critério da gestão do setor, dado o baixo número de profissionais trabalhando.

“Em outros lugares, todos que se incluem em grupo de risco estão sendo afastados, menos nós. É preciso ir em outro médico para pedir pelo afastamento, mas onde vamos se não temos convênio médico e tanta gente precisa?”, explica. Por conta da pandemia, o Sistema ùnico de Saúde (SUS) não está realizando agendamento de consultas.

Antes de o fechamento desta reportagem, Regiane havia conseguido o afastamento de sete dias e, ao retornar para avaliação, insistiu para ser testada .

Ela agora aguarda o resultado em casa, já que conseguiu mais uma semana de afastamento. Além disso, tenta pedir transferência a outro setor que seja de menor risco. A realocação foi  determinada pela 6ª Vara de Fazenda Pública de São Paulo e, portanto, é de direito legal de enfermeiros em grupo de risco.

O que diz o Santa Marcelina

O Hospital Santa Marcelina nega que haja falta de EPIs e garante que máscaras foram adquiridas pela gestão do hospital meses antes do novo coronavírus ser considerado pela Organização Mundial da Saúde (OMS) como pandemia. Segundo Paulo Borges, diretor administrativo, 800 máscaras faciais feitas em impressora 3D foram recebidas.

Ele afirma ainda que a distribuição de EPIs acontece, mas é criteriosa: avalia-se o material que se deve entregar de acordo com o setor e as demandas atendidas. Paulo explica que pacientes que chegam com os três principais sintomas da Covid-19 (dor de cabeça, febre e tosse) são encaminhados diretamente para a ala exclusiva para a doença.

Paulo reforça que o banco de funcionários do hospital é extenso e que não há desfalque em nenhuma área. “Trabalhamos com o número ideal”, diz. Quanto aos enfermeiros que fazem parte do grupo de risco, ele afirma que casos com comorbidades têm férias antecipadas, enquanto os que não têm são retirados da linha de frente e colocados na retaguarda.

Ele garante que, antes do afastamento de sete dias, todos os funcionários são testados e recebem o diagnóstico por telefone. “Não existe determinação oficial de que o afastamento deve durar 14 dias. É uma orientação que se vinculou”, afirma.

A gestão do hospital afirma ainda que o Hospital Santa Marcelina não tem nenhum motivo para ocultar informações e que, com instituição, “estão aprendendo como todo mundo”. “Nossa diretoria prima pela qualidade, pela segurança e pelo bom atendimento”, diz Paulo.

*Por motivos de segurança, as pessoas entrevistadas não quiseram ser identificadas. Os nome foram alterados na reportagem para preservar suas identidades.