Profissionais da área da saúde atuando com falta de Equipamentos de Proteção Individual (EPI) não são uma realidade encontrada apenas no Sistema Único de Saúde (SUS), nem se resumem aos médicos e enfermeiros atuando na linha de frente do combate ao novo coronavírus . Relatos colhidos pela Agência Pública trazem denúncias de funcionários do maior laboratório da América Latina na área de diagnósticos.
Os profissionais contaram, sob a condição de anonimato, que foram orientados a trabalhar na sede do grupo Dasa (Diagnósticos da América S.A), em Barueri, São Paulo, mesmo com o descumprimento de normas de segurança e saúde do trabalhador. Entre os relatos obtidos pela reportagem está a denúncia de um funcionário que foi orientado a trabalhar mesmo com sintomas de Covid-19.
A Dasa reúne mais de 700 unidades espalhadas pelo Brasil, entre elas, algumas das maiores marcas de saúde e diagnóstico do país, como os laboratórios Delboni Auriemo, Salomão Zoppi, Lavoisier e Alta Excelência Diagnóstica.
Henrique Freitas* tem 23 anos, é técnico de laboratório no parque tecnológico da Dasa em Barueri desde janeiro, quando foi transferido de uma empresa comprada pelo grupo. No segundo mês no novo ambiente de trabalho, ele já viu sua rotina se transformar por completo. A Dasa criou uma sala específica para receber os testes de Covid-19 de laboratórios e hospitais privados de todo o país, e Henrique se tornou uma das 15 pessoas responsáveis pela triagem das amostras, recebendo, abrindo as caixas, e dando entrada em cada teste no sistema do laboratório. Segundo ele, a cada dia os funcionários passam cerca de três horas na sala.
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De acordo com o técnico, as amostras recebidas são de testes feitos por pessoas hospitalizadas e internadas, e portanto, já com os sintomas mais graves, o que indicaria uma maior probabilidade de contaminação, segundo Henrique. Do setor de triagem, as amostras são levadas para o setor de biologia molecular, onde são analisadas. Freitas conta que os profissionais do setor de biologia molecular, conhecido como biomol, contam com ampla oferta de EPI, mas que a realidade não é a mesma em seu setor.
“É sabido que é perigoso trabalhar com as amostras, principalmente quando precisamos abri-las e manipulá-las. Quando criaram a sala [das amostras da Covid-19] nós, funcionários, questionamos qual a real necessidade dela, porque não tínhamos equipamento de segurança. Reclamamos muito no início, e não tivemos resposta, apenas que as amostras vêm congeladas e por isso não há risco”, conta.
Entretanto, Freitas afirma que as amostras que vêm do próprio estado de São Paulo, que também são a maioria das que chegam no laboratório, não são congeladas.
“São tubinhos compridos, que vêm fechados, mas durante a coleta no ambiente hospitalar o vírus pode estar em qualquer lugar, na tampa, na caixinha da amostra, nos saquinhos. Às vezes a amostra vaza”, relata. Em uma mensagem recebida pela supervisora do setor de triagem do laboratório, Henrique e os demais funcionários do time foram orientados a “manter a calma”, pois “a falta de máscara está geral”.
“A troca de máscara a cada duas horas é para contato direto com o paciente, então vamos economizar nas máscaras, 1 máscara está bom, não precisa ser mais, pois não realizamos os exames e não temos contato direto com o paciente”, afirma a mensagem.
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Diante das condições de trabalho, a progressão geométrica da infecção e o aumento da demanda, assusta os profissionais da Dasa. No último sábado (28), o Secretário de Vigilância em Saúde do governo, Wanderson Kleber de Oliveira, afirmou que o governo irá anunciar um acordo com o grupo Dasa, visando ampliar as análises diárias de testes do novo coronavírus.
“Com os laboratórios públicos, temos uma capacidade de produzir 6700 testes ao dia. Precisamos atingir 30 mil a 50 mil testes por dia, para poder colocar as pessoas de volta na rua”, afirmou Wanderson, destacando a parceria com “o maior grupo de laboratórios da América Latina”. “Vai nos ajudar, contribuindo com o Ministério da Saúde para realizar testes em grande volume”. O acordo ainda não foi oficializado.
Em live realizada pela XP Investimentos no dia 23 de março, Romeu Côrtes Domingues, presidente do Conselho da Dasa, afirmou que vê “com otimismo” a capacidade de oferecer testes em uma “escala maior”.
“O mundo ideal é poder fazer testes em larga escala, com interação grande com o setor público. É importante fazer diagnóstico de pessoas que tiveram contato com gente infectada ou de pessoas com sintomas. Assim vamos poder tirar as pessoas do isolamento, da quarentena e voltar a trabalhar”, completou Domingues.
“Não podem ser vítima dos agentes que estão investigando”
Segundo Walter Pedreira Filho, pesquisador titular da Fundacentro, órgão de pesquisa vinculado à Secretaria Especial de Trabalho e Previdência, do Ministério da Economia, os EPIs deveriam ser disponibilizados principalmente para o setor da triagem, porta de entrada do material. Filho atua há uma década na área de agentes químicos e ambiente de trabalho, e é professor de segurança bioquímica na pós-graduação do Instituto de Ciências Biomédicas da Universidade de São Paulo (USP).
“O setor da triagem deve receber máscaras como a N95, que é cara, mas o laboratório tem que comprar, além de luvas, proteção de tronco e avental. Esse material é descartável, não importa o consumo, eles têm que trocar a máscara, principalmente quando lidando com material biológico. As máscaras comuns, que estão sendo usadas no setor de triagem, de acordo com o relato, duram duas horas, a comunidade científica já se pronunciou muitas vezes sobre isso”, lembra o professor.
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Ele reitera que tais normas orientadoras são públicas, conhecidas e divulgadas, e que o EPI deve ser disponibilizado regularmente pelo Serviço Especializado de Medicina e Segurança do Trabalho (Sesmit) do próprio grupo Dasa. O pesquisador da Fundacentro afirma ainda que não se pode receber amostras vazadas e descongeladas.
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“O Sesmit deveria estar, mais do que nunca, atuando 24 horas por dia para fornecer a proteção apropriada aos seus funcionários”, afirma. Ele lembra que o vírus específico tem proliferação “muito rápida”, e que por isso, as condições de cuidado devem “ser redundantes”. “Quem trabalha com esses patógenos não pode ser vítima dos agentes que está investigando. Eles estão trabalhando sob estresse elevado e temos que tirar um pouco dessa pressão fornecendo EPIs e treinamento adequado para que executem suas tarefas como margem de segurança. A empresa tem que estar preocupada com isso”, completa Filho.
O trabalho do setor ao qual Freitas faz parte começou a atuar no início de março. Logo na terceira semana do mês, porém, o técnico começou a apresentar sintomas de gripe. Ele ficou dois dias em casa, voltou a trabalhar no terceiro e, no mesmo dia, com a continuidade dos sintomas, passou em uma UBS, já suspeitando que poderia estar com Covid-19.
“Eu expliquei a situação e o médico me deu três dias de atestado, mas disse que eu precisava procurar o médico da empresa para conseguir fazer o exame da Covid-19. Mandei uma mensagem para a minha supervisora e ela disse que marcaria uma consulta para mim na medicina do trabalho. Não tive retorno até hoje”, continua.
Havia passado seis dias desde que os sintomas de Henrique tinham começado, e agora ele sentia dores musculares e tosse seca. Durante a semana, ele tentou por diversas vezes marcar uma consulta na medicina do trabalho da Dasa, mas a única vez em que atenderam o telefone, afirmaram que havia um excesso de demanda por exames da Covid-19 entre os funcionários, e que ele não poderia ser atendido naquele dia. Era sexta-feira (20), Henrique já havia saído de sua casa, na zona leste da capital paulista, pegando diferentes transportes públicos para tentar chegar à medicina do trabalho do laboratório de Barueri. Ele já apresentava sintomas há cinco dias.
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No sábado (21), Henrique recebeu uma mensagem de outra supervisora lembrando que o atestado do funcionário deixava de valer naquele domingo, e que ele deveria ir trabalhar, mesmo com os sintomas. “Caso se ausente, permanecerá com débito de horas. O correto seria vir e, depois, verificar a decisão do médico, ainda mais considerando que você não realizou o exame. Ok?!”, diz a mensagem.
Piorando a cada dia, Henrique ignorou a mensagem da chefe e continuou em casa. Na segunda-feira (23) teve febre e tosse, além de dor no corpo. “Não conseguia fazer nada sem me cansar”. Após mais alguns dias tentando marcar o exame pela empresa, o técnico de laboratório desistiu e pagou R$250 em uma consulta privada, onde realizou o teste para identificar o novo coronavírus, na quinta-feira (26). O médico suspeitou que Henrique estava com o novo coronavírus, mas também com sintomas de uma infecção.
“Eu me senti cansado, com tremedeira, falta de ar, mas tudo isso foi se misturando com o emocional. Nessa situação de pandemia, a parte emocional conta muito. Até a semana passada, o sentimento era de impotência, que eu ia ficar em casa e morrer por não conseguir nem ir no médico. Isso porque eu consegui pagar o exame. Não conseguia dormir pensando nisso tudo, é muito angustiante”, relatou o técnico, que passou as últimas duas semanas isolado dos pais e irmão, com quem mora, em seu quarto.
De acordo com Walter Pedreira Filho, a dificuldade no acesso dos profissionais aos médicos do Sesmit de um laboratório é um problema grave, que amplia os sintomas emocionais e psicológicos dos trabalhadores, podendo, até mesmo, baixar sua imunidade. “É uma denúncia gravíssima. Entre as prioridades para os testes da Covid-19 estão justamente os profissionais da saúde, incluindo os técnicos de laboratórios. Esses testes devem ser realizados periodicamente. Não é só uma violação da lei, estamos lidando com um ser humano cuidando de outros seres humanos”, afirmou.
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O pesquisador destacou ainda que a pressão sobre funcionários doentes, estressados e não acompanhados pela medicina do trabalho, pode impactar, até mesmo, nos resultados das análises das amostras de Covid-19. “Eventualmente os resultados podem até não ser muito confiáveis, dependendo das condições de trabalho. Estamos em uma situação mundial em que não podemos gastar com retrabalho”, pontuou.
“Não sabemos se tem alguém ali com suspeita e ficamos todos aglomerados”
Os setores de triagem e de biologia molecular do laboratório da Dasa não são os únicos assustados com a possibilidade iminente de infecção pelo novo coronavírus. Larissa Trindade*, funcionária há um ano e meio de outro setor do laboratório da Dasa em Barueri, não tem contato direto com as amostras do novo coronavírus, mas se preocupa com o contato próximo que tem com os demais funcionários. Ela conta que com o início da análise dos testes de Covid-19 pelo laboratório, a demanda do setor de BioMol cresceu, e funcionários de outros setores foram realocados para ajudar com as análises do novo coronavírus.
“A gente sabe que lá na BioMol a vestimenta é rígida, mas meu setor não tem tudo isso. Minha analista, com quem eu tenho contato diário direto, foi mandada pra BioMol. Eu sou treinada por ela, então continuei tendo contato com ela por duas semanas depois disso, até que ela foi afastada por suspeita de Covid-19, com febre e tudo mais. Ela estava reclamando de muita dor no corpo e dor de cabeça” conta.
Larissa lembra que mais ou menos nessa época, esgotaram as máscaras do seu setor. “A Dasa estava sem máscara. Correram para buscar mais mas a gente trabalhou meio período sem máscara”. Larissa tem 25 anos e mora com os pais e com sua avó, de 83 anos, e com outra idosa de 77 anos. “Comecei a ficar com medo de voltar para casa do trabalho. Sei que minha avó correria muito risco se eu tivesse com os sintomas”. Além da convivência direta com idosos, Larissa é portadora de doença autoimune, o que também a coloca no grupo de risco.
Ela conta que sabe de outros funcionários afastados com suspeita da Covid-19. “A gente sabe que lá, muitas vezes, a informação é omitida. Duas mulheres que trabalham no setor em frente ao meu estavam com suspeita, mas ficaram falando que não. Então, no princípio, era só um achismo, a gente não sabia se tinha alguém com suspeita, mas daí comecei a entrar em pânico. A gente se aglomera no refeitório, na área de convivência, no fretado. Virou um caminho sem volta porque sabemos que tem contágio fácil, e ninguém se sente seguro, ainda mais num ambiente tão pesado de se trabalhar”, desabafa.
De acordo com o professor Walter Pedreira Filho, profissionais de laboratórios com sintomas prováveis da Covid-19, independentemente do setor, devem ser afastados imediatamente. O professor aponta também que as atividades específicas do setor de BioMol devem ser executadas por profissionais treinados especificamente para isso. “Não podemos fazer redirecionamentos e adaptar uma pessoa de outra área se ela não está devidamente treinada e qualificada para aquela função. Até porque um erro dessa pessoa pode ser fatal, tanto no prognóstico da análise, quanto em relação aos acidentes de trabalho”, explica.
Segundo Larissa, ao redirecionar os funcionários de seu setor para o setor que analisa as milhares de amostras do novo coronavírus, o critério da Dasa foi selecionar os funcionários “que estavam mais livres”. “Pegaram os que estivessem menos ocupados. Por exemplo, mandaram minha analista porque eu sei fazer o trabalho dela”. Revoltada, a funcionária reivindica: “é uma empresa que cuida da saúde, eles deveriam pensar na nossa saúde em primeiro lugar também”.
O professor Walter Pedreira Filho afirma que no caso de descumprimento das normas de segurança e saúde do trabalhador, os funcionários podem denunciar a empresa no seu próprio Sesmit. Ele reconhece, porém, que existe risco de que este setor da empresa não informe as autoridades sobre as denúncias, subnotificando os dados. “As denúncias podem ser feitas diretamente nas Secretarias Especiais do Trabalho e Emprego. É fundamental que sejam formalizadas para que providências sejam tomadas”. A partir das denúncias, auditores fiscais são encaminhados aos laboratórios, e o Sesmit e os responsáveis legais podem ser responsabilizados.
A Pública entrou em contato com a Secretaria Especial do Trabalho e Previdência para tentar conseguir os dados de denúncias relativas ao desrespeito de normas de segurança e saúde do trabalhador feitas por profissionais de laboratórios durante a pandemia do novo coronavírus, mas não obteve resposta até a publicação.
A reportagem também entrou em contato com a assessoria de imprensa do Grupo Dasa, pedindo dados de denúncias feitas para o Sesmit da empresa, e relatando as denúncias recebidas. A Dasa respondeu, em nota, que desde o início da pandemia de coronavírus tem “atuado abastecida de EPIs em todas as suas unidades laboratoriais reforçando, inclusive, o uso adequado para cada profissional: passando pelo manobrista, equipes de recepção até os times de coleta e médicos das unidades”. A empresa acrescentou ainda que sua orientação em caso de ausência de EPI é que o colaborador deve “comunicar sua liderança imediatamente e interromper a atividade”.
O CEO e principal sócio do conglomerado, Pedro de Godoy Bueno, herdou a empresa aos 24 anos, e em 2019, aos 28, entrou na lista das pessoas mais ricas do país, como o mais jovem dos 206 bilionários brasileiros. Sua fortuna é estimada em R$2,9 bilhões. No dia 20 de março, a Dasa publicou um documento em sua plataforma exclusiva para investidores, na aba de “fatos relevantes”, destacando que entre os compromissos da empresa para enfrentar o novo coronavírus estava o “reforço de EPIs (máscaras, luvas e equipamentos de acordo com a função) para os colaboradores”.