Christian foi assassinado por policiais militares no bairro em que nasceu
Lorena Barros / iG
Christian foi assassinado por policiais militares no bairro em que nasceu

O Caputera, bairro de Mogi das Cruzes, era um velho conhecido de Christian Silveira. Nascido e criado no mesmo local que a mãe, o rapaz aproveitou uma infância diferente da dela. Tinha comida todos os dias, roupas e sapatos novos, um celular, videogame e outras formas de diversão. Em meio a uma família de nove tios, as ruas do Caputera eram uma simples extensão da casa.

Foi naquela moradia feita de ruas já asfaltadas e de tantos conhecidos que nasceu, foi criado e morreu. 

Quando Christian partiu, menos de três meses estavam entre ele e a sonhada maioridade. Os dias de janeiro se arrastavam enquanto planos específicos para os 18 anos eram traçados. A primeira promoção no trabalho - passando do setor de empacotamento para o setor de frios de um supermercado local - e as aulas de habilitação, presente da avó, esperavam apenas que o calendário marcasse 13 de março para serem iniciadas. 

O tempo, que teimava em não passar, era ocupado com a rotina e as pequenas distrações de quem acabou de completar o Ensino Médio. Enquanto o curso técnico que seria iniciado no mês de fevereiro não começava, o rapaz dividia seus horários entre um namoro de longa data, os expedientes do trabalho de carteira assinada e um carro usado que ganhou de presente do tio.

Ainda não podia dirigir, mas tinha com o Corsa estacionado na garagem a dedicação religiosa de quem prepara uma casa nova. Comprava peças, lavava, sentava no volante e ligava o motor. Pensava diariamente em como poderia melhorá-lo. A única condição imposta pela avó para que Christian tivesse permissão de dirigir foi que ele não tirasse carteira de habilitação para moto. Diante de uma São Paulo caótica, o veículo de duas rodas era risco que a assustava.

Para além de acidentes de trânsito, os perigos que estavam fora de casa sempre demandaram cuidados na criação do filho único de Lucimara dos Santos. Se demorava demais para voltar para casa, escutava a voz dela do outro lado do telefone. “Onde você está? Quer que eu vá te buscar?”. Ao sair para o trabalho escutava, também dela,  um conselho acompanhado de pesar. “Volta para casa usando a camisa do mercado, filhão. Está acontecendo um monte de coisa por aí, se você tiver com a camiseta do mercado, vão saber que você é trabalhador".

Nem os cuidados da mãe, nem a infância repleta de direitos básicos, mas pouco comuns a tantos, nem os esforços para garantir o direito à vida foram suficientes para livrar Christian do destino. Janeiro já findava na sexta-feira em que ele decidiu vender o ingresso de um show para um amigo, já que ele teria expediente na manhã do dia seguinte. A 200 metros de casa, ele esperava na calçada um sanduíche chegar quando um carro passou e o alvejou junto a dois amigos. 

O carro, a habilitação, a promoção no trabalho, o namoro, o expediente na manhã do sábado, o curso profissionalizante. Todos ficaram ali, suspensos nas ruas de Mogi das Cruzes. Como todo e qualquer plano interrompido pela partida repentina de um jovem com 17 anos.

O caso de Christian é emblemático. Ele morreu junto a outros dois jovens assassinado por um grupo de extermínio criado por pelo menos um policial militar e um ex-PM na cidade de Mogi. Ao todo, 26 jovens foram exterminados por eles entre os anos de 2013 e 2015. Quase cinco anos após os crimes, Fernando Cardoso Prado de Oliveira e Vanderlei Messias de Barros foram condenados a132 anos e cinco meses de prisão e 85 anos e nove meses de prisão, respectivamente.

Em 2015, quando Christian foi assassinado, São Paulo foi o estado com mais mortes decorrentes de intervenções policiais no Brasil, 848, segundo o Anuário Brasileiro de Segurança Pública do ano seguinte. Nos dados mais recentes, de 2018, o estado registrou 851 mortes. Dentro ou fora do expediente da segurança pública, o perfil dos que mais morrem na mão de policiais são iguais a ele: homens negros entre 15 e 29 anos. 



Estão matando gente

Lucimara estava 'morta' quando decidiu ir ao centro de Mogi das Cruzes gritar. “Me escuta: estão matando gente”. No meio de uma praça. Cercada por crianças do bairro do Caputera e trajando uma camisa com o rosto do filho estampado, a mulher, hoje com 47 anos, tinha ido embora junto a Christian. “Honestamente, se tivessem me matado naquela hora só iam levar o corpo”, confessa. Uma entre dez irmãos, a mãe de filho único gritava a injustiça pelas ruas para tentar impedir que seus sobrinhos morressem chacinados da mesma forma que seu filho.

Naquele momento, Lucimara sequer sabia que policiais eram responsáveis pela morte de Christian. Quando chegou à delegacia pouco após segurá-lo morto nos braços, foi questionada sobre possíveis desafetos do filho que podiam ter cometido aquele assassinato. “Eu estava criando um homem vocês me devolveram um corpo. Quem tem que me falar o que foi que aconteceu são vocês”, respondeu.

Mulher com metade do rosto no escuro
Lorena Barros / iG

Parte de Lucimara morreu junto ao filho

Com ajuda de Inês Paz, ex-professora dela e de Christian na Escola Estadual Profª Irene Caporali de Souza, reuniu outras mulheres que tiveram os filhos tomados de forma semelhante e formou o grupo Mães Mogianas. Da união, surgiu o respeito por parte de autoridades. “Como grupo, a gente ia à delegacia e era respeitada. Foi um trabalho de formiguinha mesmo”, lembra. O andamento das investigações apontava a autoria do crime a dois policiais, o que, mesmo diante de estatísticas, foi grande surpresa para a mãe.

Você viu?

“Falaram nesses policiais e eu até falei 'mas quem é pra defender a gente está matando?’. Foi difícil de acreditar, viu?”, recorda. O difícil de acreditar logo tornou-se uma ferida que, como ela gosta de lembrar, não trouxe como perda apenas o filho dela. “Todo mundo perde. Eu porque não estou mais com meu filho, meu filho porque poderia estar formado hoje e não está vivendo, o policial porque também tem família; a população porque deixa de acreditar no estado. Todo mundo perde.”, garante.

Foi na elucidação do crime e na fé que se apoiou para voltar a viver depois da partida de Christian. Lucimara credita a Deus o impedimento de ouvir os tiros que mataram o filho tão perto de casa. Acredita queo poder divino impediu de vê-lo agonizando antes de morrer. Hoje, ela sabe também que Deus será responsável pelo reencontro dos dois no futuro. Está certa de que assim comoEle colocou o filho dela no mundo para torná-la uma pessoa melhor, o levou antes para que ela pudesse se preparar para o céu.

Mecanismos de sobrevivência

Saber que o filho voltava do trabalho para casa vestindo uniforme trazia um pouco de tranquilidade para Lucimara. Mesmo sem perceber, ela o aconselhava a utilizar a comprovação de ser um trabalhador como um método de sobrevivência. “É uma reação quase instintiva das famílias, buscar aqueles elementos simbólicos que podem criar mecanismos de proteção. Andar com a carteira de trabalho, não andar com casaco, com gorro”, explica o membro da coordenação do Coletivo Nacional de Juventude Negra (Enegrecer), Christian Ribas.

A carteira e farda de trabalho são comuns a muitos, mas costumam ser usadas quase como um escudo de proteção para pessoas jovens, periféricas e negras. A motivação, segundo coletivos, é usar da posição de trabalhador para garantir que “não é bandido” e tentar impedir a violação de um dos direitos humanos mais básicos, a garantia à vida.

“Temos que estar o tempo todo provando que somos seres humanos e que a nossa dignidade, nossa integridade física, precisa ser respeitada”, explica Ribas. Para ele, esse é o grande desafio enfrentado pela sociedade brasileira hoje. Aos olhos de estudiosos, o estereótipo de que o jovem negro é bandido, porém, é resultado de muitos anos de um racismo institucionalizado.

Por que três quartos dos mortos pela polícia são negros?

Em números detalhados do Anuário Brasileiro de Segurança Pública, 74,5% dos mortos pela polícia em 2018 eram negros. Para o pesquisador do Núcleo de Estudos da Violência da Universidade de São Paulo (USP), Bruno Manso, uma série de elementos faz com que o jovem negro seja o principal alvo da letalidade policial no Brasil. Para entendê-los, é necessário encarar primeiro a sociedade brasileira como um país com um racismo estrutural refletido nos espaços ocupados por pessoas negras.

“Há uma absoluta minoria de negros nas universidades públicas, nos restaurantes caros ou em ambientes de classe média e classe média alta que são predominantemente brancos. Isso nos faz olhar para a história de um país com 380 anos de escravidão que não soube lidar com esse passado”, explica o professor da USP.

“Livre”, mas segregada desde a Lei Áurea, essa população passou a ocupar áreas periféricas, crescendo enquanto comunidade e, nos termos do pesquisador, “assustando” a cidade em desenvolvimento. Da sensação de medo, acentuada principalmente com o crescimento das cidades na década de 1980, o patrulhamento ostensivo se voltou a bairros pobres, superlotando as prisões com o mesmo perfil das pessoas que morrem pelas mãos policiais.



“Nesses bairros o Estado chegava primeiro com um exército inimigo para defender as regiões mais bem estruturadas, com maior infraestrutura urbana, que estavam de certa forma em pânico com o crescimento desordenado das cidades. Isso se manteve por muitos anos e virou um modelo de policiamento: prisão em flagrante de jovens negros e pobres em territórios pobres”, explica Manso. Se a prisão desse público específico é reflexo do racismo e do patrulhamento que chega primeiramente na periferia, as pesquisas mostram que uma questão estrutural pode ser o gatilho que faz com que a polícia mate.

“É comum em diversas entrevistas com policiais identificar uma frustração diante do modelo de fazer um trabalho mais arriscado e na hora de fazer uma investigação ou um processo ter que entregar para uma corporação que ele sequer confia”, explica. Essa frustração e o peso da responsabilidade de cumprir com as funções ostensivas da segurança pública podem gerar no indivíduo a sensação de que fazer justiça com as próprias mãos é o caminho mais eficaz. “É muito mais comum nesse dia a dia estressante de enxugar gelo, ele achar e começar a fornecer a cultura institucional de que ‘um bandido a menos deixa o mundo mais seguro’.”, explica. Para o pesquisador, esse pensamento termina propagado e reforçado em discursos até mesmo de autoridades políticas no Brasil.

Apesar da denúncia de racismo por parte do núcleo de estudos da USP, a Secretaria de Segurança Pública de São Paulo garante que todos os policiais passam por diversos cursos antes de entrar na instituição. Um deles, de direitos humanos, "que aborda o combate ao racismo e a outros crimes de intolerância, inclusive com discussões sobre abordagem e atendimento de vítimas", diz a SSP. A pasta afirmou, ainda, que aumentou a carga horária da matéria nas academias.

Diante dos discursos de ódio e da cultura de pessoas que, mesmo arriscando a vida no combate ao crime, não acreditam no modelo de justiça atual do País, a morte na cabeça desses policiais passa a ter uma espécie de “efeito pedagógico” naqueles que estão dentro de um suposto mundo do crime.

A SSP detalhou, ainda, que todos os casos que são decorrentes de intervenção policial são "rigorosamente investigados pelo Departamento de Homicídios e Proteção a Pessoas (DHPP) e pelas corregedorias das corporações" independente de raça, cor, credo, gênero, idade e etnia da vítima. A ilegitimidade das ações, segundo a SSP, são sempre investigadas com acompanhamento do Ministério Público e do Poder Judiciário.

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