As quatro paredes da salinha de alvenaria dentro do Hospital Infantil de Palmas incomodavam a psicóloga Rosivânia Tosta. O local era utilizado para ouvir as crianças vítimas de abusos diversos, inclusive sexuais, na capital e em cidades do interior do Tocantins. Na cabeça da profissional, tratar de um assunto tão delicado com vítimas tão pequenas exigia um espaço mais humanizado. A partir dessa sensação, nasceu um sonho.
Uma casinha que compreendesse espaço suficiente para crianças vítimas de violência serem atendidas por médicos, enfermeiros, psicólogos e assistentes sociais. Fugindo da seriedade do hospital, ela seria equipada com uma ludoteca e, assim, melhoraria a qualidade do atendimento às crianças.
Com ajuda de muitas mãos, a mulher de 47 anos que tinha recebido a missão de coordenar o Serviço de Referência no Atendimento de Crianças em Situação de Violência no Tocantins (Savi) pouco tempo antes levantou para a equipe multidisciplinar que a acompanha um mantra: “Se não podemos mudar o passado, conseguiremos recriar um novo futuro para crianças em situação de violência".
Na criação de um novo futuro, Rosivânia descreve o espaço, que, mesmo com desfalques, atende em regime de 24 horas, com o carinho de quem descreve um ente querido que demorou um ano para ser gerado. O teto e a mão de obra foram presentes do Estado. O resto, doação de amigos, familiares e de instituições privadas. Tudo em busca de um melhor atendimento para as maiores vítimas de violência sexual no Brasil hoje. Em 2018, 53,8% das vítimas de estupro no País tinham até 13 anos de idade.
Segundo levantamento do Disque 100, no ano de 2018, 13,4 mil denúncias de abuso e exploração sexual de menores foram registradas no Brasil. Dentro desses casos, 70% foram praticados por pais, mães, padrastos ou outros parentes, dentro da casa da vítima ou do abusador.
Com a experiência adquirida no Savi, o “confiar em ninguém” quando o assunto é proteção da criança virou quase uma lei na vida de Rosivânia. Dentro da casinha de madeira viu na prática a violência que pode ser cometida contra aqueles que muitas vezes não conseguem nem verbalizar o que sofreram. Essa conexão tão profunda com a violência interfere diretamente.
Para ela, não só os relatos das crianças são responsáveis pelo impacto emocional nos psicólogos. Outros elementos, como a repetição dessas agressões em diferentes gerações da mesma família ou a não resolução de parte dos casos chega a machucar tanto quanto a narrativa da violência em si. “Você vê os casos sem resolução e a criança continuando no colo do abusador. Isso adoece toda a equipe”, lembra.
Sonhar de olhos abertos
Em cada um dos funcionários, a forma de fugir dessa “doença” apontada por Rosivânia difere. Para ela, a fé e o amor ao próximo são pilares principais para seguir a vida sendo profissionalmente o filtro de tantas histórias de violência. O que vem como contraponto às emoções negativas na vida profissional dela são as imagens de felicidade no rosto das crianças que passam por recuperações. De forma profissional, relata a história de uma menininha pobre com um vestido branco ainda ensanguentado após ser violentada pelo tio. De forma emocionada, porém, lembra da reação de felicidade dela ao brincar com um violão durante uma ação educativa dentro da casinha erguida por ideia dela.
Na vontade de fazer o bem ao próximo e diante de ferramentas burocráticas do Estado, Rosivânia humanizou o atendimento às crianças vítimas de violência. Naquele sonho de olho aberto, ela transformou diretamente o sofrimento de crianças violadas em momentos de leveza e diversão no meio do caos. Ela não escolheu trabalhar com violência, mas aprendeu desde cedo que, para combatê-la ou pelo menos amenizá-la quando a situação for irreversível, é necessário utilizar o amor.
Um fato social democrático e subnotificado
Segundo o último Anuário Brasileiro de Segurança Pública, os crimes sexuais costumam ter alta taxa de subnotificação, que pode ser explicada “pelos custos em que a vítima incorre ao denunciar, tais como exposição e julgamento social ou revitimização por parte das autoridades”. Uma epidemia silenciosa e democrática, que, segundo a psicóloga, não costuma escolher classe social, mas pode ser mais subnotificada em uma delas.
De classe média, Pedro* relata ter sofrido abusos por um amigo da família ao longo de anos durante a infância. Ao contar para familiares, se sentiu desacreditado. Mais de uma década depois, sente as consequências dos anos de abuso na dificuldade de ter relações, não só sexuais.
“As vítimas de classe média alta são menos socorridas. Elas pouco aparecem nos consultórios e quando aparecem, a maioria dos psicólogos não sabe lidar porque não está integrada à rede. Não têm treinamento”, conta Rosivânia. Em locais especializados dentro de hospitais públicos, como é o exemplo do Savi, é comum que o socorro seja prestado de forma conjunta entre psicólogos, médicos, enfermeiros e assistentes sociais.
“Quando os psicólogos falam em notificar [às autoridades], aquela família desaparece do consultório. Isso é muito comum. Eu creio que essas meninas são igualmente abusadas na infância, mas não estão sendo socorridas porque as famílias mais abastadas vão manifestar mais a síndrome do segredo”, explica. A síndrome do segredo é o ato da vítima ou da família de negar aquela violência por uma série de fatores. Entre eles está a dependência financeira.
Fiscalização do estado
Para garantir que os serviços públicos de defesa à criança sejam realizados, uma série de instituições são responsáveis pela fiscalização e pela proposta de projetos que melhorem a vida das vítimas de abuso. No Tocantins, o Cedeca (Centro de Defesa dos Direitos da Criança e do Adolescente) é um deles.
Os dois maiores desafios diante das taxas de abuso sexual de crianças no Brasil, para o Cedeca, são unificar as estatísticas e prestar atenção adequada à vítima. “A gente tem várias fontes, o Conselho Tutelar, o Disque 100, delegacias... Só que essas fontes não conversam", explica Mônica Pereira, Secretária Executiva do centro. A conversa entre essas fontes, para o órgão, serviria como uma forma de mapear quem são e onde estão essas crianças.
O desafio quanto à atenção da vítima vem da vontade do órgão de que a criança não seja revitimizada precisando contar a mesma história para o delegado, psicólogo, IML, médico legista e outros. “Ela é escutada no âmbito judicial várias vezes e no âmbito administrativo inúmeras vezes. Nós consideramos isso um sofrimento desnecessário, porque ela vai sempre lembrar disso. É uma forma de criminalizar a criança pelo ato, ela às vezes tem que falar detalhes porque nem sempre se acredita na fala da vítima”, afirma Mônica.
Abusos na primeira infância são uma epidemia silenciosa
Os sinais de que uma criança está sofrendo abuso sexual podem variar de acordo com o momento em que as investidas criminosas são iniciadas. Com a maioria dos estupros cometido de forma contínua e dentro de casa, aquelas que começam a ser abusadas mais cedo, antes dos quatro anos de idade, podem demonstrar menos sinais do que as que têm a rotina de agressão inserida no fim da primeira infância.
“Como a criança é um ser em desenvolvimento, na primeira infância ela adquire os conhecimentos no meio. Se a violência sexual for introduzida precocemente no ciclo de desenvolvimento, isso vai integrar a personalidade de maneira muito sutil. Ela não sabe o que é abuso, o que é sexo. Ela não vai perceber”, explica Tosta. Os abusos que acontecem desde cedo costumam ocorrer sem violência e terminam sendo inseridos na personalidade dos pequenos com reforços positivos por parte do criminoso.
“Isso é passado para ela em forma de sedução, como forma de carinho, de amizade. A criança não emite nenhum sinal, nenhum sintoma, é uma epidemia silenciosa”, pontua a profissional. A descoberta nesses casos pode chegar só no momento da adolescência, quando a pessoa em desenvolvimento percebe que os familiares de outros colegas não fazem isso com eles.
Com os abusos inseridos na memória das crianças como uma forma de prazer, a descoberta na adolescência ou na vida adulta pode trazer sintomas de traumas ainda mais perigosos para a vítima. “Essa menina se vê diante de uma culpa quando ela lembra toda a história. Como ela consegue confrontar isso? Como ela vai lidar com essas memórias, com essas sensações, com essas emoções, essa descoberta, a culpa?”, questiona a psicóloga.
Quando os abusos são inseridos na vida da criança mais tarde, porém, os sinais e sintomas podem ser percebidos por parentes com mais facilidade. “Quando ela começa mais tarde, com quatro, cinco anos, isso já causa um estranhamento na criança. Ela não está acostumada àquele toque”, explica a psicóloga. A partir desse estranhamento, uma série de reações pode ser vista na rotina dela. A agressividade, isolamento ou reprodução dos estímulos sexuais sofridos podem ocorrer.
“Uma criança pequena não tem conteúdo ou dispositivos emocionais para lidar com esses estímulos prazerosos. Ela não tem filtro ou limites, então o risco de reproduzir esse comportamento [do abuso] com outras crianças é muito grande”, pontua.
O misto de vergonha, impotência diante da facilidade com a qual o agressor consegue acessá-la e de outros sentimentos, como o medo e a culpa, toma lugar da energia emocional da criança, que antes seria voltada ao aprendizado na escola ou ao cultivo de relações interpessoais.