A ideia de utilizar garrafas PET para evitar que populações ribeirinhas passem por inundações em períodos de cheia foi resultado de um projeto de quatro alunos do departamento de arquitetura da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). A ideia, simples, serve, para além de solução construtiva, para salvar vidas: durante chuvas fortes, a cidade, cortada por rios, tem recorrentes registros de transbordamentos; com esse modelo, as casas mais próximas às margens boiariam em vez de ser inundadas.
A princípio, o protótipo foi pensado pelo aluno Nicolau Spinelli, que teve como inspiração as palafitas do município de Itapissuma, na Região Metropolitana do Recife. Aniara Silva, Lalleska Araújo e Willian Santos também fizeram parte da equipe, que chegou a ir até à China para participar da 2016 Tsinghua-Santander World Challenges of 21th Century Competition.
O desenvolvimento do projeto foi concluído com o design de uma estrutura final capaz de sustentar um módulo de 81m² de construção em light steel framing
, aguentando a mesma sobrecarga de uma casa convencional. “Na China, conseguimos trabalhar bem o projeto, ter ideias de como aplicar e desenvolver o protótipo”, afirma a arquiteta Lalleska Araújo.
A conclusão do curso dos graduandos, porém, fez com que a ideia sustentável ficasse, pelo menos até o momento, no papel. “Sinto que essa é uma ideia muito interessante. Se alguém conseguir explorar isso é um bom nicho, um programa governamental para desenvolver com tecnologia”, idealiza a pesquisadora.
Foto: Ravena Rosa / Agência Brasil
Universidades tiram da própria terra, possíveis soluções
Nos quarenta anos em que foi docente da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP, Erminia Maricato só teve um aluno negro como símbolo de diversidade diante de todo o glamour representado por um curso superior. Para além da raça, a memória traça em rostos uma disparidade social que não fica restrita à sala de aula e inspira o repensar da função transformadora do conhecimento que ali se dissemina. Agora, diante de projetos de inclusão social, ela consegue enxergar uma Academia que, para além de processos criativos e sustentáveis, reconhece parte da população em meio à crise habitacional brasileira.
“Nós vamos ter uma virada na área de arquitetura no Brasil, porque a arquitetura brasileira é famosa, mas ela é de elite. Tem muitas coisas boas em edifícios públicos, mas do ponto de vista da moradia, a estudantada jovem hoje é que está muito interessada na habitação social”, afirma. Para ela, que foi uma das responsáveis pela criação do Ministério das Cidades, o conjunto de lutas e manifestações sociais iniciado ainda na abolição da escravatura é responsável pela mudança nesse olhar acadêmico.
"Nós vamos ter uma virada na área de arquitetura no Brasil, porque a arquitetura brasileira é famosa, mas ela é de elite" - Ermínia Maricato
As análises técnicas voltadas para a habitação social são parte do retrato dessa diversidade. “Você tem uma lei federal hoje, a Lei de Assistência Técnica, Habitação e Interesse Social, que cria condições para os arquitetos oferecerem trabalhos para camadas populares. Já tem muita experiência boa acontecendo”, garante Erminia. Na assistência técnica, grupos de alunos caminham lado a lado com comunidades no fomento de ideias e projetos que possam ajudá-los a viver melhor.
Um dos casos práticos de assistência é o da Universidade Federal da Bahia, no qual a professora e presidente da Associação Nacional de Pesquisa e Pós-graduação em Arquitetura e Urbanismo, Angela Maria Gordilho, criou um programa de residência profissional em arquitetura, que já trouxe para mais de 70 alunos formados uma especialização feita por meio de trabalho de campo com elaboração de projetos, pesquisas, oficinas e planejamento.
Outro caso foi registrado pela Universidade Federal Fluminense, que tem como obrigatória a disciplina de habitação e interesse social. Nela, os alunos estudam como produzir projetos de conjuntos habitacionais em áreas de interesse, como urbanizar e como requalificar os assentamentos informais brasileiros.
“Nossos projetos são utilizados por moradores como referência. Há um conjunto habitacional no Rio de Janeiro chamado Trevo das Missões, em que nós fizemos uma série de estudos a pedido da associação dos moradores e esses estudos foram utilizados em uma negociação com o governo para a ampliação de um conjunto existente”, relata o professor da disciplina e diretor da Escola de Arquitetura e Urbanismo da UFF, Gerônimo Leitão.
Foto: Pablo Jacob / Agência O Globo
Maior favela do Rio de Janeiro concentra parte do déficit habitacional do estado
Quando sociedade e academia se distanciam
O empecilho entre as engajadas ideias universitárias e a prática das mesmas na sociedade, segundo Maricato, é o fato de que a cidade hoje funciona como um grande negócio. A moradia, por sua vez, como uma mercadoria. “Maior parte da população brasileira não tem acesso à moradia nem pelo mercado nem pelas políticas públicas. Quem tem condição de pagar uma casa no Brasil em geral é a menor parte da população, por isso você tem um mercado que eu chamo de mercado de luxo”, afirma.
"Não temos tempo de fazer esse que seria um papel da universidade, o de transferir tecnologia da academia para a sociedade" - Normando Perazzo
Se o deficit de milhares de moradias é encarado com tamanha naturalidade, é natural também que a implementação de políticas para resolvê-las não seja a prioridade. Enquanto isso, o luxo de ter uma moradia de qualidade em bairros nobres costuma vir com vantagens como melhoria no transporte, na segurança e até mesmo na qualidade de vida. “O bairro em que você mora muitas vezes te dá a condição de viver mais. Tem hospital, posto de saúde, transporte à noite. A valorização imobiliária é disputada a ferro e fogo na cidade. Se você for olhar onde é investido o dinheiro público, em manutenção, você vai ver”, completa.
Para o doutor em mecânica aplicada pela Universidade Pierre e Marie Curie, na França, Normando Perazzo, apesar da boa vontade de quem pesquisa soluções para problemas sociais, há um sem-número de obstáculos e burocracias que distanciam o remédio da doença. “A universidade é muito lerda nisso. Dizem que nela só há preguiçoso, vagabundo, mas há uma sobrecarga absurda de trabalho e não temos tempo de fazer esse que seria um papel da universidade, o de transferir tecnologia da academia para a sociedade”, declara. “Fica faltando esse papel de ligação”.
Foto: Lorena Barros / iG
Ocupação Carolina de Jesus, MTST
Além de soluções de baixo custo, é preciso garantir políticas públicas
De acordo com a Fundação João Pinheiro, referência quando o assunto é deficit habitacional, já em 2015, o Brasil dispunha de nada menos que 7,9 milhões de imóveis vazios, em condições de serem ocupados ou em construção. Não é preciso esforço matemático para compreender que, em tese, há abrigo decente para sanar o deficit de 7,7 milhões de habitações no País. Justamente por isso, segundo o engenheiro civil pós-doutor em sociologia pela USP, Luiz Kohara, acredita que é um erro apontar que apenas construir leva a sanar o problema brasileiro.
“Depende de programas habitacionais, renda e mecanismos de controle da especulação imobiliária”, resume. “Durante vários anos, houve melhoria real da renda e do salário mínimo e, no entanto, o problema de moradia avançou. Isso só mostra que o acesso à habitação não depende apenas da questão financeira. Entre 2008 e 2017, o salário em São Paulo (SP) valorizou 60%, mas o aluguel dobrou e o valor dos imóveis cresceu 230%. Isso amplia o deficit, que mostra claramente a dificuldade do brasileiro”, explica.
“Estamos vendo uma série de retrocessos. Vemos que não há recursos para o Minha Casa, Minha Vida, que era o principal meio de enfrentamento ao deficit, nem há política fundiária para assegurar terras para essa ação. O problema da habitação, se não enfrentado, apenas vai se agravando” - Luiz Kohara, engenheiro civil pós-doutor em sociologia
Mas, afinal, o que explica a grande quantidade de imóveis “disponíveis”? Do ponto de vista particular, dois grandes motivos são comuns: a não necessidade de investir ou melhorar imóveis em busca de que o tempo valorize uma determinada região ou a disputa judicial familiar por espólios. Em locais específicos, como São Luiz (MA), há também a questão da grande quantidade de imóveis considerados patrimônios públicos tombados, o que impede (e encarece) muitas de suas melhorias. “De toda forma, do ponto de vista coletivo, há a falta de incentivo do poder público para dar uma função social aos imóveis e o estímulo a esse tipo de investimento”, completa Kohara, que considera o problema da habitação o mais grave em curso no Brasil.
Segundo o especialista, estudos mostram que é mais barato estruturar uma região povoada do que levar essa mesma população para uma área que tem que ser urbanizada do zero - como o faz a maior parte dos programas habitacionais regionais. “É preciso mudar o conceito de produção pública de habitação. É como se fosse um serviço, como saúde e educação, já que a pessoa também tem direito (humano) à moradia. Primeiro se garante a moradia, depois a propriedade, se possível”, defende, acrescentando que primeiro se deve atacar a política urbana quanto à questão fundiária nas cidades, para evitar a especulação, depois investir em melhorias, inclusive com a descentralização das oportunidades (de acesso e de trabalho) para que a urbanização seja, de fato possível. “Sem essa filosofia, mesmo que se produza habitação, com a valorização imobiliária desmedida, pessoas que não faziam parte do deficit passarão a integrá-lo”.