Deficit habitacional atinge maior marca em 10 anos; solução pode vir da Academia
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Brasil sofre com falta de 7,77 milhões de residências e universidades desenvolvem soluções construtivas de baixo custo que podem ajudar a sanar o problema
Num país que aprendeu a naturalizar movimentos sem terra ou sem teto, o convívio diário com um deficit habitacional recorde parece banal. Nem mesmo os números superlativos dão a dimensão necessária: no País, faltam nada menos que 7,7 milhões de residências para que a população encontre não apenas condições decentes de vida, mas tenham acesso ao que é considerado direito humano à habitação.
Recorde, o novo teto do problema foi atingido em 2017, segundo a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad) mais recente. Para tentar reverter o quadro, células de pesquisas em todo o território nacional se dedicam a estudar e desenvolver alternativas construtivas de baixos custo e impacto ambiental para dar novo sentido à construção civil brasileira e esbarram na falta de investimentos e burocracia para ver os projetos saírem do papel.
Compreender o deficit nacional é recorrer à história, ainda que não se aprenda com ela. Na cidade de São Paulo (SP), entre os anos 2000 e 2010, o IBGE aponta que a população cresceu 12,3%; enquanto o número de brasileiros vivendo em favelas subiu 70%. Entre 2008 e 2017, o salário mínimo variou 60%, enquanto os valores de aluguéis tiveram 100% de reajuste e os imóveis foram valorizados em 230%. É lei de mercado e também gentrificação silenciada por números frios em planilhas carentes de políticas públicas que a atribuam sentido e direção de ações. Quem aponta a disparidade é o doutor em arquitetura e urbanismo e pós-doutor em sociologia pela USP e fundador do Centro Gaspar Garcia de Direitos Humanos, Luiz Kohara.
A cara do deficit nacional não é (necessariamente) a mesma da pobreza
Shirley de Melo nunca soube, mas sintetiza, em vida, o retrato do deficit habitacional no Brasil. Aos 52 anos e desempregada, a mulher vive em uma favela no bairro de Peixinhos, na Região Metropolitana do Recife. Paga R$ 60 por um cômodo pequeno de paredes cruas, diante de um depósito de lixo e sobre canaletas de um bairro no qual apenas 19% dos domicílios são atendidos pela rede de esgoto. Hoje, engrossa os números de moradores de habitações precárias, que encontra no Nordeste sua maior fatia. Mas na busca pelo clichê de “sonho da casa própria”, já pulou de fatia em fatia nas planilhas do IBGE.
Há alguns anos, morou de favor com a família da filha, fazendo parte das estatísticas de coabitação familiar; como boa parte do brasileiros já sofreu com o comprometimento excessivo de renda por causa de aluguel e quando ainda era uma criança, morando com nove irmãos e os pais em uma casa de dois quartos, já foi retrato do que hoje é definido como grupo de “adensamento excessivo”. “Eu vim morar aqui porque não tenho condições de pagar R$ 350 reais em um aluguel; saí de lá devendo, mas Deus me iluminou porque tudo que tenho aqui foi dado”, resume a mulher, que se diz feliz por não viver na rua.
Em 10 anos, 1,5 milhão de famílias passaram a sofrer com ônus excessivo de aluguel no País, segundo estudo da Abrainc/FGV
Ainda que em uma realidade bem diferente, a mais de 2,6 mil quilômetros do Recife, o artista plástico mineiro Gilson Rodrigues, 26 anos, reflete uma fatia crescente do deficit habitacional que em nada tem a ver com a pobreza extrema. Ele também encarou o medo de não conseguir pagar aluguel quando saiu do interior de Minas Gerais para a cidade de São Paulo. Pagava R$ 800 para dividir apartamento com dois amigos na região central da cidade, mas, com pouca oferta de empregos, precisou encontrar alternativas para conseguir se manter. “A saída para complementar a minha renda foi ter uma profissão paralela de autônomo”, explica.
De acordo com pesquisa da Associação Brasileira de Incorporadoras Imobiliárias (Abrainc), em parceria com a Fundação Getúlio Vargas (FGV), a evolução do deficit habitacional variou positivamente nos últimos 10 anos, especialmente a partir de 2013. O País precisaria de 7.770.227 unidades habitacionais para universalizar o acesso a abrigos dignos e o principal componente de mudança social nesse cenário foi o avanço do componente ônus excessivo de aluguel, passando de 24,2% para 42,3% do total. Ao todo, 1,5 milhão de famílias a mais passaram a enfrentar dificuldades para cumprir o pagamento mensal que dá conta de sua moradia, 91,7% delas com renda de no máximo três salários mínimos.
De Norte a Sul, pesquisadores buscam alternativas construtivas criativas
É a partir de resíduos e da vocação de cada região que as universidades brasileiras encontram matéria-prima para contribuir no combate ao deficit habitacional. E, num país de dimensão continental, as soluções pensadas são diversas e resultam de uma alquimia criativa que representam o próprio País.
Terra prensada, bambu, fibras vegetais, gesso e até garrafas PET descartadas servem de soluções para problemas de moradias diversos e se propõem a ofertar soluções de iniciativas coletivas de construção social. Na prática, esses recursos diminuem os custos em no máximo 40% se a mão-de-obra envolvida for dos próprios beneficiados, no maior estilo “faça você mesmo” em dimensões comunitárias.
Seja em propostas inovadoras ou na otimização de técnicas seculares, enquanto a necessidade por moradias cresce centenas de milhares ao longo dos anos, pesquisadores de arquitetura e engenharias civil e química estudam formas de repensar o desafio de erguer a casa própria pensando nos dois eixos fundamentais no século 21: diminuir custos e impactos ambientais.
Em Minas, cana-de-açúcar e coco viram “casas”
A Universidade Federal de Lavras, em Minas Gerais, é um dos centros de ensino brasileiros que estudam a utilização de fibras vegetais na fabricação de materiais diversos para construção, como telhas ou tijolos. Os materiais que podem virar parede e teto pelas pesquisas minuciosas dos professores Gustavo Tonoli e Lourival Mendes são muitos: vão de pequenas partes de madeira até o bagaço de cana-de-açúcar, passando pela fibra de coco e também pela terra.
O método funciona quase como um aprimoramento de técnicas seculares, aplicadas em construções clássicas, como a igreja de Nossa Senhora do Ó, em Sabará, e a de Nossa Senhora das Mercês, em Ouro Preto. “Tijolos adobe são um dos exemplos de fibras vegetais. Eles têm uma durabilidade bacana, são curados ao ar e têm fibras vegetais que melhoram essas propriedades”, afirma o professor Gustavo Tonoli, do departamento de Ciências Florestais da UFLA.
O desafio da Academia nesse caso é fazer com que o material, hoje utilizado de forma dissolvida dentro de materiais como o amianto e até mesmo o cimento, seja a maior e mais sustentável parte de uma construção, tornando-a, inclusive, mais barata.
“Nosso objetivo é sempre diminuir as fibras sintéticas e usar as fibras naturais. Em alguns dos projetos, a gente faz tratamentos para melhorar as superfícies, deixá-las mais hidrofóbicas, melhorando a durabilidade”, lembra Tonoli. A construção de um tijolo de fibra vegetal é complexa. Ela submete a matéria-prima a um processo químico capaz de dissolvê-la e “soltar” esse material, transformando-o em polpa celulósica e, por fim, se moldando às necessidades do pesquisador.
Bambu: benefícios do berço ao túmulo
A utilização de um material natural como o bambu na estrutura de casas teve início ainda nas décadas de 1970 e 1980. Pesquisadores pioneiros, Antônio Luiz de Barros Salgado, da Universidade de São Paulo (USP), e Antônio Ludovico Beraldo, da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) foram os primeiros a apontar a alternativa sustentável na engenharia civil. Na construção de uma casa, ele serve para reduzir em cerca de 30% o custo que seria empregado na alvenaria comum, mas é na questão ambiental que seu benefício se faz mais relevante.
Baseando-se em uma lógica chamada “do berço ao túmulo”, os pesquisadores analisam que todo o processo de produção e até mesmo um possível processo de demolição de terreno construído com o material traria menos malefícios à natureza. “O berço é de onde está vindo a matéria-prima, o impacto e o gasto energético da produção dela. Depois vem o transporte, a construção e a operação. Uma construção de alvenaria convencional pode gerar até 30% de entulho não utilizado. Por fim, quando vamos demolir, pensamos em para onde vai esse entulho. No descarte do bambu, ele vira adubo em até 50 anos”, explica o professor de bioconstrução da Universidade Católica de Brasília Frederico Rosalino.
Do piso ao teto, é preciso redescobrir a terra
Uma construção coletiva. É assim que o pesquisador Normando Perazzo descreve o uso da terra prensada como solução construtiva na Paraíba. Doutor pela Universidade Pierre e Marie Curie, na França, ele buscou ressignificar o uso da terra prensada para substituir o bloco cerâmico e oferecer uma solução que uma comunidade possa fazer as vezes de mão-de-obra e construir a própria estrutura habitacional. Tem sido assim desde 1995.
“A primeira vez que aplicamos esse conceito foi na Favela Cuba de Baixo, em Sapé (PB), quando os próprios moradores se juntaram e construíram 30 casas para eles mesmos. Mais de 20 anos depois e elas ainda estão em ótimas condições (foto)”, afirma Perazzo, professor da Universidade Federal da Paraíba (UFPB).
Os blocos construtivos de adobe são formados por barro/saibro e entre 6 e 7% de cimento tradicional. O material é misturado com água e prensado e oferece resistência e conforto térmico uma vez seco e alocado. “A ideia não é competir com os tijolos industriais, que, em escala, saem a um custo acessível, mas permitir que, sem a necessidade de pagar por mão de obra e usando recursos naturais encontrados na própria terra, essa tecnologia social resulte em habitações entre 60 e 70% do custo padrão de uma casa de alvenaria”, explica o docente.
Sempre aliado a lideranças comunitárias, igrejas e grupos de baixo poder aquisitivo, o projeto liderado por Perazzo tem como próximo passo promover oficinas e treinamentos para assentados de movimentos sem terra ou sem teto
Uma vocação do Sertão para chamar de lar
Em meio ao Sertão do Araripe, em Pernambuco, reside uma das maiores jazidas de gipsita do planeta. Não apenas em abundância, a matéria-prima do gesso tem pureza acima de 95%, o que contribui para garantir quantidade e qualidade de produção do material. Apesar de normalmente ser considerado apenas para forros ou divisórias, é possível construir, em poucos dias, uma casa padrão, apenas com blocos pré-moldados de gesso.
Os tipos e condições de aplicação desse material é estudado pelo núcleo de melhoramento do gesso na Universidade do Vale do São Francisco (Univasf). O grupo é composto pelo doutor em engenharia elétrica pela Unicamp Rodrigo Ramos, pelo doutor em engenharia elétrica pela UFPE Isnaldo Coelho e coordenado pela doutora em ciências de materiais da UFPE Andrea Ferraz.
Coringa, gesso é utilizado não apenas para revestimentos, mas como blocos pré-moldados para montagem rápida de residências. Sertão de Pernambuco concentra maior jazida de gipsita do País, com extração anual acima de 2,3 milhões de toneladas.
“Esse é um material utilizado desde a antiguidade, mas seu uso ainda é muito empírico; nem mesmo os produtores indicam o tempo certo de secagem, por exemplo. Um de nossos trabalhos foi desenvolver um dispositivo, cuja patente já foi requerida, para monitorar o processo de cura do material”, explica Ramos. O aparelho em questão é o sistema de avaliação do tempo de enrijecimento do gesso (Sateg), cujos químicos e eletrônicos conseguem precisar a estabilização do gesso, diminuindo, assim, tempos de manuseio e afetando o custo x benefício de sua aplicação.
No que diz respeito à construção total de residências, a aplicação desse composto é tido como vantajoso frente à alvenaria tradicional por diversas frentes, incluindo resistência ao fogo, conforto térmico, rapidez de construção e custo final da obra. “O próximo passo é conseguir baratear essa solução, por meio da reutilização de resíduos de gesso, que poderiam contaminar o solo e do desenvolvimento de um aditivo alternativo que permita impermeabilizar a sua superfície, tornando-o totalmente resistente à água”, conclui Ferraz.
Casas flutuantes com garrafa PET (UFPE)
A ideia de utilizar garrafas PET para evitar que populações ribeirinhas passem por inundações em períodos de cheia foi resultado de um projeto de quatro alunos do departamento de arquitetura da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). A ideia, simples, serve, para além de solução construtiva, para salvar vidas: durante chuvas fortes, a cidade, cortada por rios, tem recorrentes registros de transbordamentos; com esse modelo, as casas mais próximas às margens boiariam em vez de ser inundadas.
A princípio, o protótipo foi pensado pelo aluno Nicolau Spinelli, que teve como inspiração as palafitas do município de Itapissuma, na Região Metropolitana do Recife. Aniara Silva, Lalleska Araújo e Willian Santos também fizeram parte da equipe, que chegou a ir até à China para participar da 2016 Tsinghua-Santander World Challenges of 21th Century Competition.
Comunidades ribeirinhas podem ser beneficiadas - e vidas serem salvas - pela casa flutuante feita de garrafas PET, em caso de inundações, mas, até o momento, projeto não saiu do papel.
O desenvolvimento do projeto foi concluído com o design de uma estrutura final capaz de sustentar um módulo de 81m² de construção em light steel framing , aguentando a mesma sobrecarga de uma casa convencional. “Na China, conseguimos trabalhar bem o projeto, ter ideias de como aplicar e desenvolver o protótipo”, afirma a arquiteta Lalleska Araújo.
A conclusão do curso dos graduandos, porém, fez com que a ideia sustentável ficasse, pelo menos até o momento, no papel. “Sinto que essa é uma ideia muito interessante. Se alguém conseguir explorar isso é um bom nicho, um programa governamental para desenvolver com tecnologia”, idealiza a pesquisadora.
Nos quarenta anos em que foi docente da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP, Erminia Maricato só teve um aluno negro como símbolo de diversidade diante de todo o glamour representado por um curso superior. Para além da raça, a memória traça em rostos uma disparidade social que não fica restrita à sala de aula e inspira o repensar da função transformadora do conhecimento que ali se dissemina. Agora, diante de projetos de inclusão social, ela consegue enxergar uma Academia que, para além de processos criativos e sustentáveis, reconhece parte da população em meio à crise habitacional brasileira.
“Nós vamos ter uma virada na área de arquitetura no Brasil, porque a arquitetura brasileira é famosa, mas ela é de elite. Tem muitas coisas boas em edifícios públicos, mas do ponto de vista da moradia, a estudantada jovem hoje é que está muito interessada na habitação social”, afirma. Para ela, que foi uma das responsáveis pela criação do Ministério das Cidades, o conjunto de lutas e manifestações sociais iniciado ainda na abolição da escravatura é responsável pela mudança nesse olhar acadêmico.
"Nós vamos ter uma virada na área de arquitetura no Brasil, porque a arquitetura brasileira é famosa, mas ela é de elite" - Ermínia Maricato
As análises técnicas voltadas para a habitação social são parte do retrato dessa diversidade. “Você tem uma lei federal hoje, a Lei de Assistência Técnica, Habitação e Interesse Social, que cria condições para os arquitetos oferecerem trabalhos para camadas populares. Já tem muita experiência boa acontecendo”, garante Erminia. Na assistência técnica, grupos de alunos caminham lado a lado com comunidades no fomento de ideias e projetos que possam ajudá-los a viver melhor.
Um dos casos práticos de assistência é o da Universidade Federal da Bahia, no qual a professora e presidente da Associação Nacional de Pesquisa e Pós-graduação em Arquitetura e Urbanismo, Angela Maria Gordilho, criou um programa de residência profissional em arquitetura, que já trouxe para mais de 70 alunos formados uma especialização feita por meio de trabalho de campo com elaboração de projetos, pesquisas, oficinas e planejamento.
Outro caso foi registrado pela Universidade Federal Fluminense, que tem como obrigatória a disciplina de habitação e interesse social. Nela, os alunos estudam como produzir projetos de conjuntos habitacionais em áreas de interesse, como urbanizar e como requalificar os assentamentos informais brasileiros.
“Nossos projetos são utilizados por moradores como referência. Há um conjunto habitacional no Rio de Janeiro chamado Trevo das Missões, em que nós fizemos uma série de estudos a pedido da associação dos moradores e esses estudos foram utilizados em uma negociação com o governo para a ampliação de um conjunto existente”, relata o professor da disciplina e diretor da Escola de Arquitetura e Urbanismo da UFF, Gerônimo Leitão.
Quando sociedade e academia se distanciam
O empecilho entre as engajadas ideias universitárias e a prática das mesmas na sociedade, segundo Maricato, é o fato de que a cidade hoje funciona como um grande negócio. A moradia, por sua vez, como uma mercadoria. “Maior parte da população brasileira não tem acesso à moradia nem pelo mercado nem pelas políticas públicas. Quem tem condição de pagar uma casa no Brasil em geral é a menor parte da população, por isso você tem um mercado que eu chamo de mercado de luxo”, afirma.
"Não temos tempo de fazer esse que seria um papel da universidade, o de transferir tecnologia da academia para a sociedade" - Normando Perazzo
Se o deficit de milhares de moradias é encarado com tamanha naturalidade, é natural também que a implementação de políticas para resolvê-las não seja a prioridade. Enquanto isso, o luxo de ter uma moradia de qualidade em bairros nobres costuma vir com vantagens como melhoria no transporte, na segurança e até mesmo na qualidade de vida. “O bairro em que você mora muitas vezes te dá a condição de viver mais. Tem hospital, posto de saúde, transporte à noite. A valorização imobiliária é disputada a ferro e fogo na cidade. Se você for olhar onde é investido o dinheiro público, em manutenção, você vai ver”, completa.
Para o doutor em mecânica aplicada pela Universidade Pierre e Marie Curie, na França, Normando Perazzo, apesar da boa vontade de quem pesquisa soluções para problemas sociais, há um sem-número de obstáculos e burocracias que distanciam o remédio da doença. “A universidade é muito lerda nisso. Dizem que nela só há preguiçoso, vagabundo, mas há uma sobrecarga absurda de trabalho e não temos tempo de fazer esse que seria um papel da universidade, o de transferir tecnologia da academia para a sociedade”, declara. “Fica faltando esse papel de ligação”.
Além de soluções de baixo custo, é preciso garantir políticas públicas
De acordo com a Fundação João Pinheiro, referência quando o assunto é deficit habitacional, já em 2015, o Brasil dispunha de nada menos que 7,9 milhões de imóveis vazios, em condições de serem ocupados ou em construção. Não é preciso esforço matemático para compreender que, em tese, há abrigo decente para sanar o deficit de 7,7 milhões de habitações no País. Justamente por isso, segundo o engenheiro civil pós-doutor em sociologia pela USP, Luiz Kohara, acredita que é um erro apontar que apenas construir leva a sanar o problema brasileiro.
“Depende de programas habitacionais, renda e mecanismos de controle da especulação imobiliária”, resume. “Durante vários anos, houve melhoria real da renda e do salário mínimo e, no entanto, o problema de moradia avançou. Isso só mostra que o acesso à habitação não depende apenas da questão financeira. Entre 2008 e 2017, o salário em São Paulo (SP) valorizou 60%, mas o aluguel dobrou e o valor dos imóveis cresceu 230%. Isso amplia o deficit, que mostra claramente a dificuldade do brasileiro”, explica.
“Estamos vendo uma série de retrocessos. Vemos que não há recursos para o Minha Casa, Minha Vida, que era o principal meio de enfrentamento ao deficit, nem há política fundiária para assegurar terras para essa ação. O problema da habitação, se não enfrentado, apenas vai se agravando” - Luiz Kohara, engenheiro civil pós-doutor em sociologia
Mas, afinal, o que explica a grande quantidade de imóveis “disponíveis”? Do ponto de vista particular, dois grandes motivos são comuns: a não necessidade de investir ou melhorar imóveis em busca de que o tempo valorize uma determinada região ou a disputa judicial familiar por espólios. Em locais específicos, como São Luiz (MA), há também a questão da grande quantidade de imóveis considerados patrimônios públicos tombados, o que impede (e encarece) muitas de suas melhorias. “De toda forma, do ponto de vista coletivo, há a falta de incentivo do poder público para dar uma função social aos imóveis e o estímulo a esse tipo de investimento”, completa Kohara, que considera o problema da habitação o mais grave em curso no Brasil.
Segundo o especialista, estudos mostram que é mais barato estruturar uma região povoada do que levar essa mesma população para uma área que tem que ser urbanizada do zero - como o faz a maior parte dos programas habitacionais regionais. “É preciso mudar o conceito de produção pública de habitação. É como se fosse um serviço, como saúde e educação, já que a pessoa também tem direito (humano) à moradia. Primeiro se garante a moradia, depois a propriedade, se possível”, defende, acrescentando que primeiro se deve atacar a política urbana quanto à questão fundiária nas cidades, para evitar a especulação, depois investir em melhorias, inclusive com a descentralização das oportunidades (de acesso e de trabalho) para que a urbanização seja, de fato possível. “Sem essa filosofia, mesmo que se produza habitação, com a valorização imobiliária desmedida, pessoas que não faziam parte do deficit passarão a integrá-lo”.