No final de julho deste ano, quando a cobertura da Marcha das Margaridas , em Brasília, era apenas uma possibilidade que estávamos articulando na Marco Zero com a Federação dos Trabalhadores Rurais Agricultores e Agricultoras Familiares de Pernambuco (Fetape), eu escutei da diretora de Política para as Mulheres da entidade, Adriana do Nascimento, a frase: “a viagem em si já é uma peleja”. Na hora, eu concordei, mas não me detive àquela afirmação. Continuei perguntando sobre os detalhes que estavam sendo orquestrados para a mobilização e seguimos a entrevista.
De lá para cá, as conversas foram muitas, as pautas definidas e decidimos que o especial dessa cobertura seria acompanhar as mulheres e vivenciar a 6ª Marcha das Margaridas desde o percurso do Recife até o Distrito Federal e o ato na Esplanada dos Ministérios, que acontecerá na manhã da quarta-feira (14). Planejamos um diário de bordo e embarcamos no ônibus 3, do Recife em direção ao Agreste Meridional, em que a maioria das passageiras vinha dos municípios de Bom Conselho e Caetés. Passamos cerca de 45 horas na estrada percorrendo 2.272 quilômetros, entre uma parada e outra, para comer, tomar banho e seguir o caminho.
Foi na terceira parada, em um posto do município de Paulo Afonso, na Bahia, que senti o primeiro estalo na minha mente e a fala de Adriana passou a fazer ainda mais sentido. Eu e a fotógrafa Inês Campelo começamos a viver o cansaço e o desconforto de quem dorme e acorda em um ônibus e, junto às companheiras de viagem, tem que escolher a prioridade naquele momento, já que o tempo é curto e a demanda, intensa. O nosso ônibus fazia parte de um comboio com mais três veículos que levavam em média 40 pessoas cada um.
Entre o enjoo e a dor de cabeça, a necessidade de fazer uma refeição em vez de um lanche, eu entrevistava mulheres agricultoras de luta rumo à maior mobilização feminista da América Latina. E, justamente nesses momentos, eu conseguia virar uma chave dentro do meu coração e viver o instante presente que me contava sobre uma peleja de fato real. Não escutei reclamação alguma dessas mulheres. Pedi que elas definissem a Marcha das Margaridas em uma palavra e elas me disseram: resistência, força, igualdade e esperança. Elas se sentem mais fortes, mesmo diante do desmonte das políticas públicas que interferem diretamente no dia a dia de cada uma.
Falo da dificuldade de acesso das agricultoras à Previdência Pública, como elas me relataram nesses últimos dois dias. Falo também da falta dos médicos cubanos, que não mais atuam nas zonas rurais mais distantes da capital, ou em comunidades quilombolas, por exemplo. O difícil acesso ao Pronaf Mulher e ao Pronaf Jovem, que são programas de financiamento voltados para agricultoras e jovens agricultores.
Você viu?
A situação tem piorado dessa forma desde o golpe que depôs a ex-presidenta Dilma Rousseff (PT). As margaridas, esse ano, trazem uma plataforma política dirigida à sociedade brasileira, diferente das cinco marchas anteriores quando as reivindicações foram feitas ao governo federal. Como disse a diretora de Organização e Formação da Fetape, Janusi Marques, durante ato pela soltura do ex-presidente Lula (PT), no município de Águas Belas, no sertão pernambucano, “a marcha desse ano é de pressão e denúncia”. Denúncia da falta de diálogo com o governo Jair Bolsonaro, denúncia do desmonte da agricultura familiar no país e sobre a importância da liberdade de Lula no processo de resgate da democracia brasileira.
Ao final do percurso, quando chegamos no Parque da Cidade, em Brasília, reencontrei Adriana e contei rapidamente como foi a viagem. Ela me respondeu sorrindo e afirmando que já estava “calejada” depois de tantas marchas. Encontrei também Rani de Mendonça, uma amiga feminista e jornalista, que na semana passada me explicou como a Reforma da Previdência de Bolsonaro é também um golpe de desmobilização nos movimentos sindicais dos meios urbanos e rurais e me fez entender melhor sobre como o governo se utiliza de meios rasteiros e covardes para tirar os direitos do povo.
Com calma, acabo de ler o texto publicado pela Marco Zero em parceria com o SOS Corpo – Instituto Feminista para a Democracia e reafirmo o quanto é histórico o que estamos vivendo essa semana. Escrevo enquanto converso com Inês e mais uma vez ela me conta o quão emocionante foi a ciranda do Agreste pernambucano que aconteceu no município de Barreiras (BA), na tarde da última segunda, durante uma parada para esticar as pernas.
Eu sinto que somos todas uma força-tarefa. Pela primeira vez, eu piso em Brasília , e é com as pessoas certas. Dedico esse diário de bordo a todas elas.