Não havia súplica no mundo que fizesse Audenilce Bernadina dos Santos descansar. Era como se a rotina simples da aposentada, iniciada todos os dias antes do sol raiar, guiasse a vitalidade dela. Nascida há 65 anos na pequena cidade de Iguaí, na Bahia, ela chegou a São Paulo para trabalhar antes de completar 20 anos de idade. Na nova cidade tinha uma oportunidade. Estava a 1.500 quilômetros da família e da fome.
Nos anos seguintes à sua chegada em São Paulo, foi por diversas vezes estatística. Primeiro, como nordestina que veio ao Sudeste em busca de vida melhor. Depois, como uma das milhares de moradoras do Capão Redondo. Tornou-se mãe de Fábio. Oito anos depois, de Flávia. Separou-se. Mudou-se. Casou-se novamente. Tornou-se, então, mãe de Alex.
A jovem mãe dividia as tarefas de casa com as de doméstica e de vendedora autônoma. Se tinha uma folga, pegava uma mochila, os filhos pelo braço e ia de porta em porta oferecendo perfumes para vizinhas da região. Não sabia, porém, que o barraco de um cômodo que tinha construído no Jardim Edite estava no meio do projeto de reestruturação do nobre bairro do Brooklin.
A indenização com ares de expulsão obrigou a família a sair às pressas e viver em um barraco de madeira com banheiro improvisado até que uma casa de alvenaria fosse construída no Jardim Chácara Bandeirantes. O sonho da casa própria, erguido de tijolo em tijolo, veio de forma lenta, mas satisfatória. Todos tinham um teto para morar. Ninguém passava fome, mesmo nos momentos mais apertados, quando só as verduras plantadas no quintal nutriam a família e qualquer um que batesse à porta pedindo um prato de comida.
Foi dentro da casa de alvenaria que conseguiu, finalmente, relaxar. Construiu uma lojinha para vender os perfumes, nunca deixou os trabalhos como doméstica, viu os filhos crescerem, os netos nascerem e todos criarem asas.
Gostava tanto de ter suas crias por perto para almoços em família, conversas de fim de semana e datas comemorativas que era capaz de ficar intrigada quando chegava a hora de ver mais um deixar o ninho. Para todos os filhos fazia o mesmo pedido: “Construa a sua casa aqui em cima da minha. Construa a sua casa aqui no fundo do quintal. A estrutura aguenta.”
A massa invisível que alguém se torna no meio da multidão de uma capital pode tornar difícil para muitos enxergar na trajetória de Audenilce algo além de mais uma história de uma migrante brasileira. A atenção se volta a quem ela é quando lembramos que, independente da idade, da raça, sexo e cidade de origem, poderíamos estar no lugar dela. De pessoa de carne e osso que vai ao trabalho, à escola, à faculdade e pode ter a vida interrompida a qualquer momento.
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Mãe de três e avó de sete, Audenilce foi atropelada indo ao trabalho às 6h da manhã de uma sexta-feira . Por um carro de luxo. Em cima da faixa de pedestres. Em um bairro nobre da região central de São Paulo. A mulher que, por medo ou saudades, pedia para os filhos que não sumissem quando casassem, foi arrancada abruptamente deles em poucos segundos. Não importa se tinha 65 anos. Não era hora de Audenilce descansar.
Para além das manchetes e do exemplo da impunidade nos crimes de trânsito, ela é alicerce de uma família inteira que, sem aviso da idade ou da doença, foi profundamente abalada. Para os que ficam, seguir adiante é desafio alimentado pela necessidade de justiça.
A dor de quem fica
A caderneta e o Bilhete Único carregados por Audenilce foram os primeiros objetos encontrados pela polícia no dia em que foi atropelada e morta no cruzamento da Rua Augusta com a Alameda Franca. Dentro do caderno, o nome completo do filho mais velho, Fábio Cordeiro da Silva, e o telefone da casa dele foram a primeira forma de contato sobre o ocorrido.
“Eu não sabia se era um trote. Perguntava como ela estava e ninguém me falava. Eu perguntei se foi carro ou ônibus que atropelou, o cabo falou que foi um carro e o veículo se evadiu do local”, lembra Fábio. A evasão do motorista Fábio Alonso de Carvalho era apenas a ponta do iceberg. Em poucas horas, a família descobriu que o dono do Porsche que matou a aposentada cometeu crime semelhante em 2014, matando um motociclista no Itaim Bibi.
“Pela segunda vez ele não prestou socorro, não chamou o resgate. As duas vezes ele parou o carro, olhou se o veículo estava amassado ou não e fugiu”, garante o advogado da família, Ademar Gomes. A informação fez com que o pedido de prisão do motorista, a princípio por homicídio culposo, passasse para homicídio doloso.
Um desembargador chegou a dar habeas corpus para Fábio por acreditar que não havia elementos suficientes para a prisão do rapaz, mas ele foi preso novamente de forma preventiva e está à disposição da Justiça no Cadeião de Pinheiros. Para a família, isso é um alívio. “Veículo pra ele nao é meio de transporte, é arma. Ele não tem que ficar solto, tem que ser trancado, enjaulado da melhor forma possível e ficar lá para o resto da vida. Esse é o nosso pedido”, diz Fábio.
A tão aguardada reunião com os filhos e netos estava marcada para o fim da semana na qual ela foi morta. Para a família, uma das formas de sobreviver à dor dilacerante da perda abrupta é seguir à risca os ensinamentos passados por ela. “Vamos estar todos unidos e com fé em Deus. Ela sempre falou ‘eu não quero ver nenhum dos meus filhos sozinhos no mundo, desamparados, quero ver todos com famílias do bem, um cuidando do outro’. Era desse jeito que ela cuidava da gente”, lembra a filha Flávia.
Responsável pelo acidente, o motorista do Porsche será julgado no tribunal do júri e pode pegar de 12 a 30 anos de prisão por homicídio doloso. Ele poderá, ainda, responder em processo civil por dano moral e material.