O debate sobre o uso da bicicleta como um meio de transporte tem permeado a esfera pública brasileira há alguns anos. Com a implantação, em São Paulo, de diversos trechos de ciclovias e ciclofaixas, as conversas ficaram ainda mais acaloradas: qual seria o melhor caminho para integrar as bicicletas ao intenso tráfego de automóveis nas grandes cidades? Para além dessa discussão, o número de ciclistas urbanos não só cresceu na capital paulista, segundo dados do Ibope, como também a adesão ao transporte não motorizado aumentou em todo o País.
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Dentro deste contexto, o Dia Nacional do Ciclista, comemorado neste sábado (19), foi criado para, segundo o site do Senado, “prestar uma homenagem ao ciclista e biólogo Pedro Davison, que morreu em 19 de agosto de 2006 após ser atropelado por um automóvel no Eixo Rodoviário Sul, em Brasília, quando tinha apenas 25 anos”.
Além disso, a proposta da data é também promover o uso da bicicleta como um meio de transporte que é benéfico para o ciclista, as cidades e também o meio ambiente, já que diminui a quantidade de veículos automotores, emissores de poluentes, nas vias do Brasil.
De lá para cá, 11 anos após a criação da data, muitos avanços foram observados quanto ao uso da bicicleta. De acordo com a mestre em Engenharia de Transportes, Simone Costa, da Secretaria Municipal de Urbanismo, Infraestrutura e Habitação do Rio de Janeiro, o uso do transporte não motorizado não pode mais ser classificado como uma "tendência", já que ele veio para ficar.
Agora, a expansão da malha cicloviária é tida como uma obrigação do governo de cada cidade, e as principais questões sobre sua implantação englobam planejamento e infraestrutura, ou seja, “qual a qualidade dessa ciclovia? Como será feita a manutenção?”, ilustra Costa.
As vantagens
Além das questões tratadas pelos órgãos públicos, é preciso olhar para os ciclistas para compreender o que deu certo e o que precisa ser repensado ou melhorado. Já que, se por um lado os problemas cicloviários se acumulam nas metrópoles brasileiras, são inúmeras as organizações e ONGs que trabalham para difundir a prática e todos os seus benefícios.
Rapidez, praticidade, saúde e custo-benefício: esses são os fatores que, segundo a doutora em Engenharia Civil na área de Transportes, Mariana Oliveira, influenciam o uso da bicicleta como um meio de transporte. Em uma pedalada, é possível fugir dos congestinamentos, praticar uma atividade física , economizar com gasolina, por exemplo, e experimentar as ruas através de uma nova ótica.
A professora universitária Janaíra França, por exemplo, passou a usar a bicicleta todos os dias no começo deste ano. Agora, ela se sente mais saudável e bem-humorada, além de conseguir encarar a cidade de formas diferentes. “Eu vejo as pessoas estressadas dentro dos carros e dos ônibus, enquanto eu consigo me locomover sem o problema do trânsito”, pontua.
França ainda usa, esporadicamente, serviços de motorista. Por isso, ao aderir à bicicleta, não abriu mão de seu carro, que é utilizado em viagens mais longas e possui suportes para levar a bike.
Já a paulistana Julia Guadagnucci, estudante de jornalismo, começou a pedalar rumo à faculdade por conta da rapidez desse meio de transporte. Ela percebeu que, de bicicleta, demorava menos do que de ônibus. Hoje, ela faz tudo com a sua bike , batizada de "Hilda", porém, quando precisa de outro meio de transporte, usa o metrô ou o ônibus. "Mas sempre prefiro andar por cima da terra", brinca.
Pensando em um veículo de propulsão humana, ainda existe a questão da responsabilidade ambiental . Em tempos de aquecimento global, o grande número de automóveis consumidores de energia não renovável vai contra a corrente da sustentabilidade.
Os transportes limpos, como a bicicleta, entram nesse cenário como uma das possíveis soluções. “Acredito que a bicicleta, se usada em grandes proporções, a longo prazo pode ser sim uma aliada na redução do impacto ambiental causado pelo excesso de motorizados em nossas cidades”, prevê Oliveira.
Além da cena pública, iniciativas privadas ganharam fôlego com a popularização da bike . A empresária Cláudia Franco, por exemplo, saiu da área de Tecnologia da Informação para fundar, em 2011, a escola de pilotagem de bicicletas Ciclofemini. Nos últimos anos, ela conta que notou um grande aumento da demanda de alunos após a implantação de novas vias cicloviárias em São Paulo.
“A bicicleta passou a fazer parte da cena da cidade não só durante os finais de semana, para o lazer, mas também durante a semana nos trajetos para o trabalho e para a escola”, defende.
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As dificuldades
Entretanto, nem tudo são flores. A maioria dos ciclistas de metrópoles, segundo Costa, não consegue abandonar outros meios de transporte devido as grandes distâncias que estão presentes em seu dia a dia. “Uma questão que ultrapassa o uso da bicicleta é a concentração de empregos no eixo Centro-Zona Sul [no Rio de Janeiro]”. Assim, a opção não motorizada fica inviável à grande parcela da população que mora em bairros mais afastados e precisa, desse modo, percorrer muitos quilômetros.
Uma alternativa, para Costa, é a adequação do transporte público às bikes . Dessa forma, as pessoas poderiam usar a bicicleta de suas casas até a estação de metrô, por exemplo, deixá-la no bicicletário público e seguir a viagem por meio dos trilhos. Outras possibilidade é a adoção de um vagão, em trens e metrôs, que comporta o veículo, como já acontece na cidade de São Paulo.
Além disso, as cidades brasileiras carecem de infraestrutura
cicloviária. Apesar dos recentes investimentos em metrópoles como São Paulo e Rio de Janeiro, as ciclovias e ciclofaixas cobrem apenas 3% do total de ruas e avenidas de São Paulo – 17 mil, no total. A estrutura auxiliar também dificulta a locomoção via bicicleta, já que nem todos os espaços públicos e privados contam com bicicletários e, como ressalta França, muitas empresas não contam com vestiários, um item indispensável na vida dos que pedalam para chegar ao trabalho.
Outro ponto que precisa ser melhorado é apontado por Júlia Guadanucci, sobre a falta de segurança nos espaços destinados às bicicletas. "Infelizmente não posso deixar minha bicicleta parada num paraciclo da rua. Já tentei, mas minha bicicleta não estava mais lá quando voltei", conta.
Para Costa, a insegurança no trânsito é, de certa forma, "desencadeada pela falta de infraestrutura cicloviária", já que a hegemonia dos automóveis é reforçada quando uma importante avenida não conta com uma ciclofaixa, por exemplo, e os ciclistas não estão amparados por um espaço legalmente seu dentro das vias de tráfego.
Salientado por França, que já teve problemas com a educação no trânsito em duas ocasiões – em uma, chegou a cair da bicicleta –, a convivência entre carros e bicicletas já foi pior, mas ainda precisa melhorar para que a plena coexistência aconteça.
Quando estamos falando de mulheres ciclistas, então, um novo fator é adicionado: o assédio . "Nós [mulheres] temos de enfrentar barreiras para ocupar o espaço público, por isso a bicicleta é revolucionária e uma ferramenta que pode ser aliada ao feminismo", diz Julia Guadagnucci.
Entretanto, a exposição de uma mulher que pedala pode gerar inúmeros casos de assédios diários nas ruas do País, pelos quais a estudante de jornalismo já teve que passar.
Pequenas cidades e as bikes
Por um lado, se os argumentos fazem parecer que o uso da bicicleta seria perfeito em cidades interioranas, é preciso analisar a questão com um pouco mais de cuidado. Se as cidades grandes apresentam o problema das grandes distâncias, os motoristas já estão acostumados, de acordo com Costa, a seguir leis básicas de trânsito.
Em municípios menores, é possível abandonar qualquer transporte motorizado porque as distâncias são mais curtas, porém, a educação de trânsito ainda caminha a passos vagarosos. Nesses casos, é preciso uma mobilização ainda maior por parte da prefeitura para que diminuam-se as chances de um acidente envolvendo ciclistas.
Além do Centro-Sul
Por mais que as iniciativas afirmativas das duas maiores cidades brasileiras, São Paulo e Rio de Janeiro, mostrem uma crescente preocupação com essa modalidade de transporte, é preciso analisar a situação de municípios que distam da realidade do sudeste. A Associação Metropolitana dos Ciclistas do Grande Recife, por exemplo, realizou, em 2016, um relatório analítico da situação na região.
Os problemas apontados pela associação são diversos, desde a necessidade de ampliar a malha cicloviária da região até a omissão da fiscalização de trânsito. Segundo o relatório, o número de agentes de trânsito, por exemplo, foi reduzido em 128 funcionários entre 2012 e 2015: dos 550 agentes iniciais, a prefeitura contava com 442, em 2015.
Segundo o canal Mobilize-se, portal de conteúdo sobre mobilidade urbana sustentável, a situação fica ainda mais complicada quando analisamos todas as capitais do País. Enquanto São Paulo, Rio de Janeiro e Brasília despontam com mais de 400 km de malha cicloviária, Salvador conta com 85,9 km, e Manaus tem apenas 6,9 km de trechos adequados à bicicleta.
Se a quilometragem é baixa, a adesão ao transporte alternativo pode ser vista em uma relação inversamente proporcional. Cada vez mais, segundo Mariana Oliveira, grupos de ciclistas e ativistas têm crescido nas capitais brasileiras e representam um importante papel na mobilidade urbana. "Além de fazerem levantamento de dados sobre o sistema cicloviário de suas cidades, eles também atuam presencialmente nas pautas políticas", em um exemplo de como a sociedade civil pode agir em prol de causas sociais.
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