A jovem indígena que utiliza o nome fictício Fausia, concedeu entrevista à AFP por Zoom em Tegucigalpa, Honduras, em 22 de abril de 2024
Orlando SIERRA
A jovem indígena que utiliza o nome fictício Fausia, concedeu entrevista à AFP por Zoom em Tegucigalpa, Honduras, em 22 de abril de 2024
Orlando SIERRA

Naquele dia, ela foi pegar água no rio quando dois homens a atacaram pelas costas, a espancaram, a chutaram e colocaram uma faca em seu pescoço. Estuprada por um deles, engravidou. Oito anos depois, Fausia denuncia Honduras por tê-la proibido de abortar.

Sentada no jardim do Centro de Direitos das Mulheres (CDM), em Tegucigalpa, Fausia, que se identifica com um nome fictício, conta sua história à AFP após denunciar, em março, o Estado hondurenho perante o Comitê de Direitos Humanos da ONU pela proibição absoluta do aborto.

Filha de um cacique do povo nahua, defensor dos direitos territoriais, ela foi agredida por dois homens cuja família usurpou a terra de seu pai em uma zona rural de Honduras. "Foi uma represália", afirma a indígena de 34 anos.

"Sou sobrevivente de um estupro. Foi muito violento. Fui ameaçada de morte. Disseram que se fizesse a denúncia, iam assassinar a mim e a minha família", relata, escondendo o rosto das câmeras da AFP.

O crime ocorreu em novembro de 2015 e apenas um mês depois ela venceu o medo e apresentou a denúncia perante o Ministério Público, após o que começou uma longa via-crúcis jurídica. Sua saúde foi se deteriorando e a princípio pensou que se devia às agressões.

Mas quando lhe disseram que estava grávida, sentiu o mundo desabar sobre ela. "Foi um choque psicológico, emocional. Era algo que eu não tinha planejado ou desejado, não queria. Senti autorrejeição".

Mas os médicos a advertiram que a denunciariam se fizesse o aborto, um crime punido com penas de três a dez anos de prisão.

Honduras é um dos seis países do continente americano - juntamente com El Salvador, Nicarágua, República Dominicana, Haiti e Suriname - onde o aborto é proibido mesmo em casos de má-formação fetal, estupro ou risco de vida para a mulher. Até pouco tempo atrás, a pílula do dia seguinte tampouco era permitida no país.

- 'Uma marca que não se apaga' -

Na época, Fausia tinha um casal de filhos e um lar em uma comunidade indígena. Mas as ameaças e intimidações contra ela e sua família as levaram a se mudar dez vezes e emigrar para a cidade, conta, soluçando. Sua casa chegou a ser saqueada e destruída.

Forçada a assumir uma maternidade indesejada, teve um parto muito difícil, relata. "No centro cirúrgico, eu chorava. Depois, me obrigaram a amamentar e que beijasse a bebê, o que não queria fazer".

"Se tivesse tido a oportunidade de interromper a gestação, eu teria feito porque é algo que [...] mudou completamente a minha vida... É uma marca que não se apaga", afirma.

Uma vez ela tentou se enforcar, mas a cadeira virou e ela caiu. Nesse momento, um de seus filhos chegou e a impediu. "Pensei várias vezes em me suicidar pela rejeição que sentia, pela dor, pelo sofrimento", confessa.

Em 2017, conseguiu que os agressores fossem presos, mas poucos meses depois foram libertados. "A primeira barreira que encontrei foi não acreditarem em mim; a segunda, que não era uma adolescente, mas uma mulher com filhos", comenta.

Com a ajuda do CDM e do Centro de Direitos Reprodutivos (CDR), Fausia reapresentou seu caso em 2018. Passaram-se oito anos desde o estupro até a justiça declarar culpados os agressores. Mas a sentença não é definitiva.

- 'Maré verde' -

Segundo a Secretaria de Saúde (2022), em Honduras diariamente três meninas menores de 14 anos são forçadas a manter gestações e ser mães após serem estupradas.

"Buscamos justiça e reparações para Fausia, mas estamos pedindo ao comitê que exija que Honduras acabe com esta proibição", que viola os direitos das mulheres, diz à AFP Catalina Martínez, vice-presidente para a América Latina e o Caribe do CDR, com sede em Bogotá.

Martínez explica que o caso de Fausia pode demorar cerca de três anos para ser resolvido, mas tem uma "dimensão global relevante".

"O impacto que terá na América Latina será muito grande" porque criará jurisprudência e será uma referência para a justiça, ressalta.

O aborto é legal em Argentina, México, Colômbia, Uruguai e Cuba. No Brasil, a interrupção da gravidez é permitida em caso de gestação provocada por estupro, risco de vida para a mulher e anencefalia fetal. "A maré verde continuará crescendo", acrescenta Martínez, referindo-se à cor que simboliza a luta pelo direito ao aborto.

No pulso em que leva um lenço verde amarrado junto ao processo intitulado Fausia vs. Honduras, a indígena diz ser consciente do desafio de mudar a proibição do aborto em seu país, blindada na Constituição hondurenha.

"A justiça tardia no meu país me obriga a recorrer a uma instância internacional [...] para que nenhuma outra mulher em Honduras enfrente o que eu passei", conclui.

    AFP

    Mais Recentes

      Comentários

      Clique aqui e deixe seu comentário!