Em um registro inédito feito no norte da Noruega, um par de orcas selvagens foi filmado protagonizando um comportamento nunca antes documentado em seu habitat natural: um “beijo de língua”. A cena, que durou aproximadamente dois minutos, mostra uma interação oral delicada e contínua entre os cetáceos, posicionados frente a frente, antes de se afastarem e seguirem por caminhos opostos.
De acordo com o Phys.org, o estudo publicado recentemente na revista Oceans , destaca que esta é a primeira evidência científica desse comportamento em orcas em liberdade. “Este estudo apresenta a primeira observação registrada de mordidas de língua entre duas orcas selvagens” , escrevem os autores. Embora esse tipo de contato já tenha sido observado em cativeiro desde a década de 1970, os cientistas nunca haviam testemunhado algo semelhante em ambientes naturais.
Comportamento reforça laços sociais e pode impactar políticas de conservação
Em entrevista concedida ao Portal iG, Juliana Assis, bióloga marinha do Projeto Lagoa Viva destacou a relevância do comportamento inédito registrado entre duas orcas selvagens no norte da Noruega — o chamado "roer a língua", também conhecido como tongue nibbling . A interação foi descrita como um gesto voltado à construção e ao fortalecimento de vínculos sociais, especialmente entre jovens indivíduos.
“O comportamento de 'roer a língua' entre orcas é visto como um ato afiliativo, ligado à motivação dos animais para estabelecer e manter laços sociais e sentir-se parte de um grupo, sobretudo entre os juvenis” , explicou a especialista. Esta é a primeira vez que se observa o ocorrido entre orcas selvagens, o que amplia a compreensão sobre sua complexidade social .
Estrutura para o vínculo, não só para a caça
Apesar de possuírem estrutura óssea voltada para a caça, as orcas demonstraram controle oral refinado durante o comportamento. “A ausência de sinais de agressão ou dominância sugere que, embora a mandíbula e os dentes sejam poderosos, as orcas são capazes de exercer controle preciso sobre seus movimentos orais para fins sociais” , diz Juliana Assis.
Para Patrícia Farias, bióloga marinha e mestre e doutoranda em dinâmica dos oceanos e da Terra pela UFF, “esse registro mostra que ainda há muito a ser estudado pelos pesquisadores, conhecemos apenas uma fração do repertório social e emocional das orcas selvagens. As orcas possuem dialetos e hábitos próprios e exibem aprendizado social complexo. Este gesto “deliciado” registrado mostra que existe sutileza entre suas interações em grupo e mostra que não podemos reduzi-las apenas a caçadoras brutais e há muito a ser estudado e descoberto entre estes seres fascinantes” , afirmou ao iG .
Novas tecnologias e ciência cidadã ampliam as possibilidades
Ambas as biólogas destacam que a principal ferramenta para compreender o padrão social das orcas continua sendo a observação do comportamento animal em seu habitat natural . Para isso, o uso de câmeras de ação subaquáticas, acopladas a drones ou veículos autônomos, podem ser fundamentais na documentação de interações sutis entre os cetáceos. A ciência cidadã, que já teve papel crucial ao registrar esse comportamento de forma oportunista, também deve ser incorporada como aliada nesse processo.
Elas alertam ainda para a importância de regulamentar rigidamente as atividades de turismo marinho, evitando interferências negativas na vida dos animais e garantindo condições adequadas para a pesquisa comportamental. Além disso, populações de orcas sob cuidados humanos continuam sendo úteis como modelos de estudo, permitindo a observação de dinâmicas sociais em ambientes controlados — especialmente quando certos comportamentos são difíceis de registrar na natureza.
Impactos para a conservação e o bem-estar
O registro inédito apesar de inusitado, acaba por reforçar uma crítica importante sobre políticas de conservação, especialmente para orcas mantidas em ambientes artificiais como cativeiros e tanques que limitam drasticamente as possibilidades de expressões sociais complexas. Para as pesquisadoras, a descoberta serve como argumento sólido em defesa de práticas de bem-estar mais rigorosas, que garantam às orcas espaços e condições adequadas para manter interações sociais naturais.
“Esses animais são extremamente complexos, com vínculos emocionais e comportamentos ricos em significado social. Compreendê-los é essencial para fortalecer políticas de conservação e proteger as populações selvagens em seus próprios habitats” , conclui Patrícia Farias.