Uma simples conversa entre Marcos Willians Herbas Camacho, conhecido como Marcola, e um funcionário da Penitenciária Federal de Porto Velho gerou uma ruptura sem precedentes no Primeiro Comando da Capital (PCC), como destacado pelo jornal O Globo.
A revelação de que Marcola chamou Roberto Soriano, o Tiriça, de "psicopata" durante um atendimento médico em 2022 desencadeou uma série de eventos que culminaram em uma verdadeira guerra interna na facção criminosa. O que começou como uma fala infeliz de Marcola agora ameaça desencadear uma nova onda de violência no estado de São Paulo e além.
O áudio da conversa, que foi gravada como parte dos procedimentos padrão em prisões federais, acabou sendo apresentado pelo promotor de Justiça Lincoln Gakiya, do Grupo de Atuação Especial de Repressão ao Crime Organizado (Gaeco) do Ministério Público de São Paulo. Esse áudio foi peça-chave no processo que levou à condenação de Soriano por um assassinato ocorrido em 2017.
"O Marcola sabia bem o que estava falando, só não esperava que o Soriano teria ciência disso, pensou que ficaria interno. Eu avisei ao MPF que existia a gravação em Porto Velho. Não digo que ele foi condenado por isso, mas foi uma prova importante", relata Gakiya.
A revelação de Marcola não apenas colocou Tiriça em apuros judicialmente, mas também gerou um racha interno. Sentindo-se traído, Soriano uniu forças com outros membros da cúpula do PCC, como Abel Pacheco de Andrade, o Vida Loka, e Wanderson Nilton de Paula Lima, o Andinho, ambos presos na Penitenciária Federal de Brasília, para tentar expulsar Marcola da liderança da facção.
Essa disputa pelo controle da organização resultou em uma escalada de tensões, com Marcola retaliando e enviando a notícia da briga para fora da cadeia, colocando os dissidentes em perigo. Até o momento, essa disputa ainda está em curso, com a sintonia de rua, composta por chefes em liberdade, apoiando Marcola.
O que pode acontecer
Para especialistas como o pesquisador Bruno Paes Manso, essa divisão dentro do PCC está sendo vista como uma oportunidade pelo poder público para enfraquecer a facção. No entanto, há o risco de que essa disputa desencadeie uma nova onda de violência, tanto dentro quanto fora das prisões.
"Essa é uma das estratégias de isolamento das lideranças. O próprio promotor Lincoln Gakyia tem explicado isso em entrevistas, de que está reproduzindo as estratégias da Operação Mãos Limpas, na Itália, na luta antimáfia. Lá, o rompimento levou a uma fragilização desses grupos, o que permitiu um avanço do Estado contra eles. O risco é sempre de descambar para uma violência no cotidiano das pessoas. E aí o tiro pode sair pela culatra", pondera o especialista, em entrevista ao Globo.
Marcola
Marcola, nascido em Osasco em 1968, é uma figura central no PCC desde os anos 2000, quando assumiu o comando da organização após expulsar os fundadores originais. Sua ascensão coincidiu com a transformação do PCC em uma força dominante no tráfico de drogas, especialmente em São Paulo.
Embora Marcola seja considerado mais moderado do que os fundadores originais, sua liderança foi marcada por demonstrações de força e violência, como o assassinato de um juiz-corregedor em 2003 e os ataques coordenados em São Paulo em 2006, conhecidos como "Crimes de Maio".
Entre fugas e recapturas, "Marco cheira cola" (daí o apelido) realizou um mega assalto à Transpev, empresa de transporte de valores. Márcio Sérgio Christino, autor de “Laços de sangue, a história secreta do PCC”, relata que se tratou de uma "cena de filme". Era 2 de julho de 1998, e o bando de Marcola e seu irmão Alejandro Juvenal Herbas Camacho, o Junior, roubou R$ 15 milhões da empresa no bairro do Jaguaré, Zona Oeste da capital.
"Alugaram um imóvel no prédio onde morava um gerente-geral da empresa. Certo dia, sequestraram ele e a família: “Se quiser ver sua família de novo, vai até a sede e permite que nossos carros entrem e tirem o dinheiro”. Assim foi feito, uma ação cinematográfica, fora dos parâmetros conhecidos na época", recorda Christino.
Marcola começou a ser reconhecido entre seus pares por gostar de roupas e itens de luxo, o que lhe rendeu um novo apelido: Playboy
Marcola emergiu como figura proeminente no PCC em 2002, quando os fundadores José Márcio Felício, o Geleião, e César Augusto Roriz da Silva, o Cesinha, aumentaram sua autoridade e começaram a usar a facção em benefício próprio, adotando métodos violentos.
Essa mudança provocou a revolta de Marcola, que se rebelou contra seus antigos aliados. Após o suposto assassinato de sua ex-esposa, a advogada Ana Maria Olivatto, a mando da mulher de um dos fundadores, Marcola expulsou Geleião e Cesinha do sistema prisional, assumindo o controle da facção. Essa ruptura marcou o fim do primeiro racha dentro do PCC.
Com Marcola no comando, a estrutura do PCC foi reformulada e a chamada "sintonia final" foi estabelecida, um conselho composto por doze membros que tomavam decisões de forma coletiva. A facção concentrou seus esforços no tráfico de drogas, tornando-se uma força dominante nesse mercado.
"Esse momento foi uma espécie de democratização da gestão do PCC, quando chegaram outros importantes integrantes" descreve o promotor Gakiya. "As decisões não eram tomadas unilateralmente pelo Marcola, mas sim por um conselho que depois vieram denominar de sintonia final."
Além disso, o assassinato de Rogério Jeremias de Simone, o Gegê do Mangue, e Fabiano Alves de Souza, o Paca, em 2018, expôs as divisões internas da facção. Gegê e Paca foram mortos por contrariarem os interesses de membros da facção, que estavam desviando recursos do PCC para benefício pessoal.
Gegê era a "cabeça" comercial da façção. No entanto, de acordo com o MPSP, um grupo passou a usar a estrutura da quadrilha para vender cocaína para o exterior, via Porto de Santos, sem repassar lucros ao PCC, o que teria resultado na morte ds dois. Em seguida, integrantes do grupo "rebelde" foram mortos.
"Foi algo grave e ainda não resolvido. O Gegê e o Paca eram compadres e sócios de outros nomes da cúpula (como Roberto Soriano e Abel Pacheco, ligados à contenda atual). Isso também foi um dos causadores do racha de hoje", reforça Gakiya.
"Os caras na cadeia têm medo, ficam quietinhos. Os presos estão do lado do Marcola, entendem que ele não tem culpa na fala sobre o Tiriça, que não foi algo para prejudicar. A liderança não está abalada", pontua.
Apesar da atual disputa ter uma importância maior do que conflitos anteriores, especialmente devido ao tamanho e influência do PCC, não houve ainda impacto externo, segundo Bruno Paes Manso. No entanto, ele alerta para o fato de que muitos membros estão se declarando autônomos, o que pode levar a uma situação explosiva.
Por outro lado, o promotor Gakiya descarta a possibilidade de uma aliança entre o PCC e o Comando Vermelho e não vê impactos concretos da disputa interna, mas teme um futuro sombrio, prevendo conflitos tanto nas prisões quanto nas ruas.
"No PCC, tudo tem de ser comprovado. O Marcola não é o dono. É um líder importante e respeitado, mas os demais também são" frisa Gakiya. "No meu entendimento, o racha é algo que ainda vai gerar um banho de sangue, não só no sistema prisional como também nas ruas."
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