Sob sombra da guerra na Ucrânia, Índia e China vivem 'impasse armado'

Disputa de fronteira tarda a ser resolvida e, embora ambas adotem ‘neutralidade pró-Rússia’, objetivos são diferentes


Foto: Editoria de Arte - O Globo
Territórios disputados na região do Himalaia.

China e Índia têm muito em comum: quatro milênios de História, as maiores populações do mundo, tradição budista enraizada na cultura, centros de alta tecnologia e uma fronteira de 3,4 mil quilômetros. Nos últimos anos, alguns desses pontos de contato viraram rivalidade, sobretudo a fronteira. As diferenças foram potencializadas após um confronto em 2020 que deixou mortos de ambos os lados. Desde então, já houve 16 rodadas de negociação para resolver a disputa, sem sinal visível de progresso. Divergências históricas voltaram a aflorar e reviveram o risco de guerra, agora sob a lente de aumento da ascensão chinesa como potência global e da competição geopolítica na Ásia.

A invasão russa da Ucrânia adicionou um elemento a mais de complexidade a esse cenário, criando novos dilemas. Tanto Pequim como Nova Délhi mantêm relações próximas com Moscou, embora com objetivos e históricos distintos. Há semelhanças na postura que ambos adotaram em relação à guerra, numa espécie de “neutralidade pró-Rússia”, como é chamada por alguns observadores, mas com diferenças marcantes.

A parceria da China com a Rússia está ligada sobretudo ao intuito de fazer frente à influência dos EUA. No caso da Índia, os laços com Moscou têm pilares sólidos desde os tempos da União Soviética. A dependência militar amarra o país na parceria, já que 70% do arsenal indiano têm origem russa. O eventual enfraquecimento da Rússia após a guerra na Ucrânia causa ansiedade em Délhi pela possibilidade de que Moscou se torne dependente de Pequim e mais suscetível a pressões chinesas para reduzir a cooperação com a Índia, diz Manoj Kewalramani, diretor do Programa de Pesquisa do Indo-Pacífico do Instituto Takshashila, centro de estudos de Bangalore.

Posição singular
Na dinâmica de crescente antagonismo entre o Ocidente e o eixo Moscou-Pequim, a Índia ocupa posição singular, com relações próximas tanto de Washington quanto de Moscou. Em boa medida, é uma continuidade da política de não alinhamento adotada na Guerra Fria, chamada pelo atual governo indiano de “autonomia estratégica”. O que há em comum entre a ligação de Nova Délhi com Moscou e Washington é a blindagem contra a China. Por terra, sistemas de defesa russos. No mar, a aliança de defesa com os Estados Unidos.

Oficialmente, Pequim mantém o discurso de que há espaço para uma relação com “benefícios mútuos”. Ao mesmo tempo, projeta sua superioridade econômica e militar com iniciativas que incomodam a Índia na chamada “nova rota da seda”. Já na Índia há menos ambiguidade: a China é vista como o desafio estratégico número um. Em meio às tensões em torno de Taiwan, os atritos na divisa sino-indiana lembram que há um outro estopim na região com risco de detonar uma guerra.

Humilhação no Himalaia
Não seria a primeira. Em 1962 os países entraram em confronto devido à disputa de fronteira na região do Himalaia, que terminou com uma derrota humilhante para a Índia. A discórdia começa como um legado colonial, na linha demarcada pelo então Império Britânico em 1914, e emerge como foco de disputa quando a recém-fundada República Popular da China efetiva a incorporação do Tibete em 1951, o que criou com a Índia uma das fronteiras não demarcadas mais extensas do mundo. O gelo só seria quebrado em 1988 com a visita de Rajiv Gandhi à China, a primeira de um primeiro-ministro indiano ao país em 34 anos.

Seguiu-se um período de relativa normalização, amparado pelo entendimento tácito de que a disputa na fronteira ficaria em segundo plano. Mas isso mudou depois dos violentos incidentes de junho de 2020, que deixaram 20 indianos e quatro chineses mortos em confrontos com paus e pedras — segundo acordo mútuo, o uso de armas de fogo estava vetado na fronteira. Ambos os lados trocaram acusações de incitar a pior escalada em décadas, ao violar os acordos com a construção de infraestrutura em áreas em disputa e a concentração de tropas.

A ação da diplomacia serviu para reduzir os riscos de choque imediato, criando zonas de separação entre as tropas. Mas a memória histórica de animosidade voltou com tudo, e os mecanismos de prevenção que haviam sido implantados antes do incidente foram abalados. O cenário é “sombrio”, resume Srikanth Kondapalli, especialista em política externa e de defesa da China da Universidade Jawaharlal Nehru, em Nova Délhi. Segundo ele, hoje o risco de uma nova guerra pode ser descrito como o mais alto desde 1962, a julgar pelo alto número de tropas na área disputada.

“Não há informações oficiais, mas a estimativa é de que a China tenha 70 mil soldados soldados e a Índia, 120 mil. É uma mobilização maior que a de 1962, quando a China tinha 28 mil e a Índia, 10 mil soldados”, diz Kondapalli. A situação atual é de um impasse armado.

Um dos obstáculos para a distensão citados pelos indianos é a visão hierárquica que a China tem da ordem regional. Com uma economia cinco vezes maior e o triplo do orçamento militar, Pequim entende que a Índia deveria aceitar um papel de “potência de segunda classe”, diz Manoj Joshi, autor do livro “Entendendo a fronteira Índia-China: A persistente ameaça de guerra no alto do Himalaia”.

Mudança no equilíbrio
Mais que a causa de um eventual conflito, a disputa na fronteira é portanto um sintoma das mudanças no equilíbrio de forças no Indo-Pacífico, impulsionadas pela ascensão da China. Para Joshi, Pequim não tem pressa em resolver a disputa porque ela serve para conter a Índia.

“A China usa a fronteira para desequilibrar a Índia. A disputa obriga a Índia a desviar recursos e a distrair sua atenção de outras áreas, como o Indo-Pacífico” diz ele.

O governo chinês insiste em que a fronteira mantém-se “relativamente estável” e que as relações bilaterais não devem ser reféns da disputa. Mas a Índia recusa esse argumento, afirmando que a normalização só será possível quando houver uma solução. A parceria da China com o rival Paquistão e o avanço da “nova rota da seda” promovida por Pequim aumentam a inquietação na Índia, que teme se ver cercada por iniciativas econômicas e militares hostis. Daí a adesão indiana ao Quad, aliança de defesa com os EUA, o Japão e a Austrália, que a China vê como uma ameaça direta.

‘Guerra em duas frentes’
A imprensa indiana passou a emitir sinais de alerta para o antigo temor de uma “guerra em duas frentes” incluindo o Paquistão, país com o qual a Índia já travou quatro guerras. Enquanto isso, a frente dupla é um desafio real na arena diplomática. Até agora o país foi capaz de manter o equilíbrio sob a “nova guerra fria”, correndo em raia própria para preservar as relações om o Ocidente sem perder as vantagens da parceria com Moscou, como armas e petróleo a baixo custo.

Wang Dehua, especialista do Centro de Estudos Internacionais de Xangai, considera que o argumento da assimetria de poder como obstáculo para um entendimento entre China e Índia não passa de “propaganda” do Ocidente para inflar a rivalidade entre os dois países. Ambos têm vantagens comparativas em áreas como tecnologia, diz Wang. Na opinião dele, Nova Délhi deveria aderir à “nova rota da seda” para se beneficiar de projetos de infraestrutura, e cabe à China assegurar que a parceria com o Paquistão não traz riscos para a segurança da Índia.

Para analistas indianos, o discurso chinês de que é possível manter uma relação de benefícios mútuos sem uma solução aceitável na fronteira é descolado da realidade e revela o desinteresse de Pequim em levar em conta as preocupações no país vizinho. Segundo Manoj Kewalramani, até 2017 a Índia não via a China como uma grave ameaça de segurança. Foi quando ocorreu um incidente na fronteira e o governo chinês iniciou uma agressiva campanha, incluindo advertências de que é capaz de “ensinar uma lição” à Índia, como em 1962.

“Foi um erro estratégico da China. Perdeu-se uma geração inteira de indianos que havia passado a ver a China de forma favorável” diz ele.