Mulheres que são vítimas de violência obstétrica no país vivem um sofrimento duplo: além do trauma de passar por situações de abuso em um momento em que estão vulneráveis, até hoje não há uma lei federal específica para enquadrar tais condutas envolvendo profissionais de saúde.
Um levantamento feito pelo Centro Feminista de Estudos e Assessoria (Cfemea) a pedido do GLOBO identificou que há ao menos 13 projetos de lei apresentados na Câmara que abordam o tema de alguma forma. Um deles apresentado há cerca de dez anos, mas nunca aprovado.
A violência obstétrica é caracterizada por uma série de ações que envolvem mulheres gestantes, que vão desde ignorar as dores da mulher, até proferir xingamentos e realizar intervenções forçadas e procedimentos invasivos sem autorização. Um deles é a episiotomia, um corte feito no períneo para ampliar o canal de parto, e a manobra de Kristeller, quando a barriga da mulher é empurrada para facilitar o nascimento do bebê.
Agressões e abusos impostos a gestantes já motivaram neste ano 113 denúncias nos canais do Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos. Desde o ano passado, relatos de agressões a mulheres ocuparam o noticiário com mais frequência. Em dezembro, o caso do ginecologista Renato Kalil, conhecido por acompanhar a gestação de celebridades, veio a público após o vazamento de áudios e vídeos da influenciadora Shantal Verdelho em que ela relata violência obstétrica.
No início do mês, o caso de um anestesista que estuprava grávidas durante o parto em uma maternidade no Rio de Janeiro chocou o país. O flagrante motivou a bancada feminina do Senado a elaborar uma proposta legislativa, cuja minuta ainda está em desenvolvimento. As senadoras costuram um acordo para apresentar o texto em conjunto com a Câmara dos Deputados e, assim, agilizar sua aprovação. A previsão é que o texto seja apresentado após o fim do recesso parlamentar, na semana que vem.
Um ponto ainda em discussão é quais seriam as possíveis punições aplicadas em caso de descumprimento da lei. A falta de efetividade das normas que já existem é uma preocupação das parlamentares. Atualmente, há legislação que obriga estabelecimentos de saúde a permitirem, por exemplo, acompanhantes durante o parto, mas nem sempre a determinação é cumprida, o que, na opinião das parlamentares, aumenta o risco de que a gestante sofra violência obstétrica.
"Estamos traçando uma proposta legislativa para que possa se evitar que atrocidades, barbaridades dessa natureza, como acompanhamos recentemente, possam se repetir, passando pela questão do tratamento humanizado, a obrigação da presença do acompanhante e por outros elementos que entendemos que possam fechar essas arestas", afirmou ao GLOBO a senadora Eliziane Gama (Cidadania-MA), líder da bancada feminina do Senado.
— Qual é o grande problema? Às vezes há uma lei, ela existe, mas não é praticada, não é cumprida. Os órgãos de fiscalização e controle precisam, de fato, acompanhar.
Mas um projeto proposto em 2013 pelo deputado Antônio Bulhões pretendia incluir no Estatuto da Criança e do Adolescente a determinação para que as grávidas fossem orientadas sobre o direito ao atendimento humanizado, proposta que não prosperou. A bancada do PSOL na Câmara é uma das que mais atuam em relação ao tema. Parlamentares da sigla já propuseram dois projetos a respeito, um deles em 2014 e outro em 2019.
"É escandaloso que essa pauta não mobilize o Congresso Nacional. Pelo menos 25% das mulheres que parem no Brasil sofrem violência obstétrica no brasil, a maior parte delas mulheres negras. Infelizmente, a gente tem um Congresso Nacional majoritariamente masculino em que as pautas que envolvem a vida das mulheres são invisibilizadas. De licença maternidade e licença parental, a projetos que tratam da humanização do parto e da violência obstétrica", afirma a deputada Talíria Petrone (PSOL-RJ), autora de um dos projetos.
Um balanço feito pelo Cfemea no ano passado chamou atenção para a gravidade do problema no país. Ao mapear iniciativas no Congresso relacionadas aos direitos das mulheres, a organização ressaltou a ausência de legislação sobre o tema.
“No Brasil, a violência obstétrica é recorrente; advém disso a importância dos projetos sobre gestação e parto. Muitas mulheres são submetidas a abusos quando procuram serviços de saúde durante a gestação, na hora do parto, do nascimento ou do pós-parto”, diz o relatório, completando:
“Os maus-tratos podem incluir violência física ou psicológica, podendo fazer da experiência do parto um momento traumático para a mulher e/ou o bebê. A violência obstétrica está relacionada não apenas ao trabalho de profissionais de saúde, mas também a falhas estruturais de clínicas, hospitais e do sistema de saúde como um todo.”
"É grave. Não há lei ainda no Brasil. Com o aumento dos relatos, se faz urgente legislarmos sobre o tema", avalia a deputada Alice Portugal (PCdoB-BA).
A deputada Carmen Zanotto (Cidadania-SC), que atua sobretudo em pautas relacionadas à saúde, frisa que é preciso levar a discussão aos profissionais da área para que haja maior conscientização a respeito.
"Tem-se falado muito da violência institucional, que é quando nós, trabalhadores da saúde, dedicamos menos tempo às mulheres negras do que às brancas. Isso não deixa de ser um tipo de violência", diz a parlamentar, que é enfermeira.
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