Para cada um dos poucos leitos livres de tratamento intensivo (UTI) da Covid-19 nos hospitais públicos do Amazonas, há três desocupados no sistema privado.
No Rio Grande do Norte, enquanto três quartos das UTIs públicas para pacientes com coronavírus estão ocupados, o sistema particular está com a lotação próxima à metade. E no Ceará, mesmo com as UTIs próximas ao limite tanto no SUS quanto nos hospitais privados, a situação no sistema público é ainda mais crítica.
Os dados, resultado de um levantamento da Agência Pública com as secretarias de Saúde estaduais, revelam a desigualdade no acesso à saúde no Brasil: em diversas partes do país, UTIs do SUS têm registrado ocupação muito acima que as do sistema privado. Em todos os estados brasileiros, a maior parte da população não tem acesso a planos de saúde privados, segundo dados da Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS).
Além disso, a Pública descobriu que o Ministério da Saúde já recebeu propostas de entidades que representam hospitais particulares para que o governo pague UTIs privadas para a população que depende do SUS. Segundo a reportagem apurou, a proposta foi feita enquanto o Ministério da Saúde era comandado por Nelson Teich.
Em estados do Norte e Nordeste, ocupação de UTI no SUS supera a de rede privada
Em cinco estados do Brasil, os leitos de UTI públicos para tratar pacientes em situação grave de Covid-19 já estão com mais de 90% da lotação. São eles Amazonas, Acre, Ceará, Pernambuco e Roraima.
Outros quatro estados estão com mais de 75% de UTIs públicas ocupadas: Rio Grande do Norte, Pará, Maranhão e Espírito Santo. Já Paraíba, Bahia, Rondônia e Alagoas estão com mais da metade das UTIs do SUS ocupadas.
São Paulo, Rio de Janeiro e Sergipe têm mais de 50% de ocupação das UTIs no estado, mas não separam dados do sistema privado e do público.
No Amazonas, o primeiro estado onde as autoridades anunciaram o colapso do sistema de saúde, em abril, a lotação das UTIs públicas está próxima do limite: 93,59%, segundo o último mapeamento de leitos realizado pela Secretaria de Saúde. No sistema particular, a ocupação é menor: 76,98%. O levantamento mostrou 54 leitos de UTI livres nos hospitais privados.
O estado vem registrando casos de mortes de pessoas que esperavam por vagas em UTI desde o mês passado. Há também relatos de falta de UTIs móveis no SUS para transporte de pacientes em situação mais grave. Uma reportagem do UOL mostrou que quem pode pagar tem utilizado UTIs áreas particulares para ser internado em hospitais do Distrito Federal e nos estados do Sudeste. Um voo de Manaus a São Paulo custa a partir de R$ 80 mil, podendo chegar a R$ 200 mil.
Segundo a Pública apurou, no Amazonas apenas 12% da população tem acesso à saúde privada.
A situação também é desigual no Rio Grande do Norte. Enquanto 77% das UTIs públicas no estado estão ocupadas, no sistema privado a ocupação está por volta de 53,73%.
No Ceará, a taxa de ocupação geral, juntando SUS e rede privada, é de 91,3% dos leitos de enfermaria e de 91,8% em leitos de UTI. Mas a situação é ainda mais crítica no SUS: 90% dos leitos de UTI estão ocupados. Das 16 unidades hospitalares monitoradas pela Secretaria de Saúde, oito apresentavam taxa de ocupação igual ou maior que 90% em leitos de UTI e seis tinham 100% de seus leitos em enfermaria ocupados.
Na capital, Fortaleza, cerca de 95% dos leitos de UTI estão ocupados com pacientes suspeitos ou confirmados de Covid-19.
Maioria dos estados não divulga dados de ocupação do sistema privado
Segundo levantamento da Pública, a maioria absoluta dos estados não informa a ocupação de UTIs do sistema privado. Há casos que a lotação é informada com a do sistema público, sem diferenciar.
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É essa a situação de São Paulo, o estado com maior quantidade de casos e mortes no país. A Secretaria Estadual de Saúde não divulga dados de ocupação do sistema privado e informa que cerca de 71% dos leitos de UTI públicos e privados no estado estão ocupados. A situação piora na região metropolitana da capital, onde os leitos de UTI estão com 89,9% de sua capacidade preenchida. A Secretaria Municipal de Saúde divulga os dados apenas da rede pública, que está com 92% de ocupação nas UTIs de hospitais municipais.
Questionada pela reportagem, a Secretaria Estadual de Saúde não enviou dados de ocupação detalhados entre as duas redes.
A Pública procurou o Hospital Albert Einstein, um dos primeiros a notificar e tratar casos de Covid-19 no país, que informou não divulgar taxas de ocupação.
Segundo reportagem do UOL, a taxa de ocupação dos hospitais privados em São Paulo está em torno de 80%, conforme os dados da Associação Nacional de Hospitais Privados. A Pública questionou a associação, que informou que não divulgaria taxas de lotação, mas reconheceu que já registrou, sobretudo em março, uma diminuição na ocupação de UTIs privadas.
Na última quarta-feira, dia 20 de maio, o governo de São Paulo anunciou que prevê o colapso da rede pública em três semanas e abriu uma chamada para contratar 1,5 mil UTIs no sistema privado. O secretário de saúde afirmou que há risco de “estrangulamento do sistema” público.
No Rio de Janeiro, segundo estado com maior número de mortes pelo novo coronavírus, o governo também não divulga ocupação de leitos privados. À reportagem, a Secretaria de Saúde informou que 79% dos leitos de enfermaria e 86% de UTI da rede estadual estavam ocupados, com um total de 2.334 internações.
A pasta informou também que, com exceção do Hospital Regional Zilda Arns e do Hospital de Campanha Lagoa-Barra, todos os leitos destinados à Covid-19 estavam ocupados no dia 17 de maio. Segundo a secretaria, 335 pessoas com suspeita ou confirmação de Covid-19 aguardam transferência para UTI.
Na capital fluminense, a Secretaria de Saúde mede uma ocupação de 88% nos leitos de UTI da rede municipal. No dia 13 de maio, havia 159 pessoas internadas em tratamento intensivo com suspeita ou confirmação de Covid-19.
Em todos os estados brasileiros, a maioria da população não tem planos privados de saúde, segundo dados da ANS. O acesso é pior em estados do Norte e Nordeste do país, justamente onde reportagem da Pública mostrou que há menos disponibilidade de UTIs por habitante.
Ministério da Saúde foi procurado por entidades privadas, que se queixam de falta de cirurgias
Segundo a Pública apurou, entidades que representam hospitais particulares já haviam demonstrado interesse ao Ministério da Saúde para que o governo custeie leitos de UTI para pacientes do SUS. As conversas teriam ocorrido durante a gestão de Nelson Teich. Uma fonte afirmou à Pública que hospitais privados de pequeno e médio porte, por terem suspensas as cirurgias eletivas, viam com bons olhos receber pacientes do SUS, pagos pelo governo.
A Pública questionou o ministério sobre a proposta da rede privada, que não respondeu até a publicação da reportagem. Atualmente, a pasta divulga apenas a quantidade de leitos de UTI existentes no país e nos estados, incluindo as novas contratações.
A assessoria do ministério chegou a afirmar à reportagem que iria divulgar a ocupação dos leitos dos hospitais que tiverem preenchido o Censo Hospitalar, mas a informação ainda não é disponibilizada. Segundo o ministério, já foram 2.242 leitos de UTI habilitados em hospitais públicos, privados e filantrópicos no país desde o início da pandemia. O governo afirma pagar uma diária de R$ 1.600 mil por leito.
A Associação Nacional de Hospitais Privados informa que a receita dos hospitais associados caiu 26% nos quatro primeiros meses do ano. A entidade afirmou estar em negociação com o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) sobre a situação financeira dos hospitais privados.
A proposta de fila única para UTIs, semelhante ao que ocorreu em países como França, Itália, Espanha, Irlanda e Austrália, é defendida por grupos de estudos em saúde de universidades como a Universidade de São Paulo (USP) e a Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Segundo a doutora pela Fiocruz Lígia Bahia, em entrevista à Pública, “sem fila única, haverá mortes excessivas entre os mais pobres”.
Durante uma transmissão feita pela Confederação Nacional das Seguradoras, o presidente da Federação Nacional das Empresas de Saúde Suplementar, João Alceu Amoroso, afirmou que a fila única de UTI “pode desorganizar o sistema privado” e que “o poder público não tem tecnologia nem parâmetros para utilizar este sistema”. O presidente da federação, que representa 17 grandes empresas do sistema hospitalar particular, disse também que “é um mito dizer que qualquer ociosidade deve ser disponibilizada para Covid-19”.
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