
O Brasil ferve em fogo brando na obra de José J. Veiga, autor tão fundamental quanto esquecido pelos leitores dos dias atuais.
Em livros como “Sombra de Reis Barbudos” e “A Hora dos Ruminantes”, não há ponto de inflexão ou ruptura que anuncie a presença do absurdo. A perversão é testada aos poucos. Avança a passos lentos até se tornar parte da paisagem. O estranhamento inicial se acomoda. A apatia também. Tem uma pedra no caminho (as máquinas invasoras, em um caso, e os bois, em outro), e ela não é pequena, mas tudo o que todo mundo quer – ao menos as pessoas comuns – é tirar da vista e seguir a vida em uma rota já alterada. Quando percebem, a água esquentou e é tarde demais para pular da panela. Estamos fritos. Ou melhor. Cozidos em água fervente.
Antes disso, há sempre alguém disposto a levantar o dedo. E, diferentemente do conto de fadas, na vida real (ou nas novelas de realismo fantástico) não é o rei desnudo quem sai de cena. É quem acusa o estranhamento.
De certa maneira é essa estrutura narrativa, entre o espanto e a apatia, o real e o fantástico, que atravessa a cinegrafia de Kleber Mendonça Filho.
Em “O Som ao Redor” (2012), levamos um tempo para descobrir o que querem, afinal, os vigilantes que se aninham nas ruas escuras de Boa Viagem, área nobre de Recife (PE). E mais um tempo para saber que aquele barril de pólvora conduzido em forma de suspense vai explodir numa luta de classe atualizada e que tem a dinâmica da casa grande e da senzala como cenário histórico.
Em “Aquarius” (2026) todos demoramos para entender a teimosia de Clara, a personagem interpretada por Sônia Braga, para vender logo o apartamento decadente para uma empreiteira disposta a demolir um prédio histórico e levantar no lugar uma torre de alto padrão. Ela é a única que aponta a destruição de um modo de vida – e seus laços e vínculos sociais – disfarçada de área gourmet. E sofre as consequências disso.
“Bacurau” (2019) desenha uma distopia em cores futuristas mais vibrantes – e óbvias. Ainda assim, os personagens demoram para associar os eventos estranhos do povoado (um drone-disco-voador vigilante, um caixão na beira da estrada, um assassinato sem explicação, visitas misteriosas) à tragédia iminente. E reagem a tempo.
No fim é a capacidade do oprimido de antecipar a jogada do agressor que define o desfecho das histórias. Todos saem de alguma forma vingados com a ideia de que a consciência histórica é a melhor ferramenta para dinamitar o absurdo.
“O Agente Secreto”, provável indicado ao Oscar de 2026, quebra um pouco a expectativa e a apoteose dos outros filmes do diretor. É o mais melancólico da obra de Mendonça Filho – bem agora que os inimigos que ele retratava nos trabalhos anteriores estão a um passo da prisão.
Como numa distopia de José J. Veiga, o personagem de Wagner Moura funciona como um último representante da espécie capaz de enxergar o tsunami prestes a varrer a costa. E os sinais são muitos. O primeiro deles é o corpo esquecido num posto de gasolina à beira da estrada e que o único funcionário do local tenta disfarçar como pode, entre pedras, jornais e papelões.
As moscas, o cheiro e o pé para fora revelam o que não pode ser escondido. É pelo rosto espantado e insurgente de Marcelo (ou Armando) que o absurdo se revela. É nele também que está a força de todo o filme.
O protagonista é um homem que sofre por ver a própria história atravessada pela brutalidade em curso. Ela explode em pontos diversos na cidade onde ele retorna para fugir e se esconde para se encontrar: uma perna (cabeluda, como na lenda local) é encontrada no ventre de um tubarão, outro símbolo da cidade. Uma delegacia é improvisada para receber a grã fina acusada de deixar morrer a filha da empregada aos seus cuidados (qualquer semelhança com o caso Miguel não é mera coincidência). Um forasteiro chega chegando e diz como pesquisadores da região devem se comportar.
O filme se passa em 1977, mas os pontos de conexão com o Brasil e o mundo de hoje são evidentes. Estão lá os gérmenes da violência e da corrupção policial, o surgimento das milícias e dos esquadrões da morte e a aliança nada republicana entre generais e os interesses do setor privado.
Mendonça Filho faz do conflito pessoal de Marcelo/Armando uma piscadela para a disputa mais atual sobre o modelo energético hoje: a disputa pelo lítio, a matéria-prima do carro elétrico.
Mendonça Filho atualiza em “O Agente Secreto” o esforço dos grupos hegemônicos políticos do Sul – apresentados como entreguistas europeizados e iludidos no filme anterior – para boicotar os esforços de desenvolvimento, via pesquisa e inovação, em outros centros do país desde a ditadura. O desmonte da Sudene, instrumento estatal para orientar políticas públicas na região, tem efeitos até hoje – em que pese o esforço da ditadura – iniciada por Castelo Branco, um cearense – para interiorizar, integrar e desenvolver o país com estradas, estádios de futebol, iniciativos como o projeto Rondon e, sim, universidades. O efeito, sem um programa de reforma de base profundo (como pensado anos antes por João Goulart) e um redesenho do modelo tributário, foi o benefício de elites locais isoladas como ilhas e o atraso em relação ao chamado “centro”. Sem contar a aceleração do êxodo rural em direção às grandes cidades do Sudeste.
Esse projeto autoritário, como se sabe, deu muito errado. Institucionalizou a corrupção nas pontas da burocracia, onde o guarda da esquina (ou o delegado ou o chefe do IML ou da seção de identificação retratados no filme) podia pintar de bordar porque era amigo do rei. Sim, aquele que estava nu. E perseguiu inocentes sob a justificativa de combater o comunismo. O personagem de Wagner Moura, assim como a família Paiva, retratada em “Ainda estou aqui”, fugia do estereótipo dos inimigos declarados do regime. E foi declarado inimigo mesmo assim. Seu crime era lutar pelo que é justo em um tempo em que o absurdo ganha outro nome. Era assim em 1977. É assim ainda hoje.
A esperança, se há, é que alguém ainda se lembra. E refaz as pontas da memória como um ajuste de contas. Com o passado, sim. Mas também com o futuro. O esquecimento é o maior dos absurdos.
*Este texto não reflete necessariamente a opinião do Portal iG