
Uma proposta de reforma no Código Civil, em discussão desde 2024, propõe mudanças na regulamentação do uso de imóveis residenciais para locações de curta duração. O texto pode regulamentar uma discussão entre donos de residências e os condomínios, que se baseiam em leis diferentes para tratar do assunto.
O projeto de lei ainda está em análise no Senado Federal, sem previsão de quando a mudança pode ser feita. A mudança nas normas pode impactar investidores e trabalhadores que vivem dessa renda.
Para entender o que como a lei trata do assunto hoje e seus possíveis desdobramentos, o Portal iG entrevistou o advogado Vanderlei Garcia Jr, sócio do Ferreira & Garcia Advogados, especialista em Direito de Contratos e Doutor em Direito Civil pela USP.
Lei do Inquilinato

Vanderlei Garcia Jr, advogado especialista em Direito de Contratos
Atualmente, a legislação brasileira contempla a modalidade de aluguel por curta temporada pela Lei nº 8.245/1991, conhecida como "Lei do Inquilinato". Ela define a locação residencial por temporada com prazo máximo de 90 dias.
De acordo com o especialista, são os imóveis destinados à residência temporária do locatário por motivos de lazer, realização de cursos, tratamento de saúde, turismo, entre outros.
"Essa modalidade possui características próprias que a diferenciam das locações residenciais tradicionais. Por exemplo, permite o pagamento antecipado do aluguel e dos encargos por todo o período contratado. Também é comum a aplicação de cláusulas específicas de vistoria, limpeza, consumo de utilidades e entrega do imóvel" , explica Garcia Jr.
Na prática, essa legislação serve de base para a atuação de plataformas como Airbnb e Booking, ao viabilizar juridicamente o aluguel temporário de imóveis. O contrato pode inclusive ser feito por pessoas físicas, para fins estritamente residenciais e por períodos curtos.
O crescimento dessas plataformas tem causado dúvidas e conflitos sobre as regras, principalmente em condomínios, o que tem obrigado a Justiça e o Legislativo a reverem conceitos e criarem novas normas sobre o assunto.
Regras sobre o Airbnb
Apesar de terem os serviços garantidos pela Lei do Inquilinato, as plataformas de aluguel por curta temporada estão sujeitas à legislação em que os condomínios se baseiam.
As regras sobre condomínios está baseada no Código Civil (a partir do art. 1.331), que garante o direito de propriedade, mas com limites relacionados à função social, ao sossego, à segurança e à saúde dos outros moradores, aponta o advogado. Com isso, surgem conflitos entre o direito do dono de usar seu imóvel como quiser e o direito dos demais condôminos à tranquilidade e segurança.
"Hoje, a jurisprudência majoritária, inclusive do Superior Tribunal de Justiça (STJ), tem reconhecido que, embora o aluguel por temporada seja legal, os condomínios podem impor restrições à sua prática, desde que essas limitações estejam previstas na convenção condominial ou aprovadas em assembleia nos moldes legais" , afirma o especialista em direito de contratos.
Atualmente, na ausência de proibição expressa na convenção ou de deliberação válida, o proprietário tem o direito de alugar a residência por temporada, desde que respeite o regulamento interno, as normas de segurança e o dever de não perturbação do sossego.
Mudança no Código Civil
O Projeto de Lei nº 4/2024, que integra a proposta de reforma do Código Civil, pretende ampliar a autonomia dos condomínios na regulação das locações por curta temporada, especialmente as realizadas por plataformas. A medida tem como objetivo esclarecer e fortalecer o poder das assembleias condominiais para restringir ou até proibir esse tipo de locação, o que pode alterar o atual equilíbrio entre o direito individual de propriedade e o interesse coletivo dos condôminos, observa Garcia Jr.
Atualmente, embora o Código Civil permita que a convenção condominial regule o uso das unidades, a falta de uma previsão específica sobre o aluguel por temporada tem gerado controvérsias judiciais. O projeto busca preencher essa lacuna legal, propondo a inclusão de dispositivos que permitam aos condomínios deliberar sobre a vedação ou regulamentação dessas locações em assembleia.
"Na prática, a reforma busca dar maior segurança jurídica aos condomínios, reconhecendo sua legitimidade para disciplinar, restringir ou até mesmo proibir a prática de locações por temporada, desde que respeitado o quórum legal e os direitos fundamentais dos proprietários" , diz o advogado.
Para ele, a proposta tende a impactar diretamente o mercado de aluguel por temporada e os modelos de negócio de plataformas digitais, exigindo maior atenção por parte de proprietários e investidores às normas internas de cada condomínio.
Por que o assunto gera polêmica?

A discussão se torna polêmica ao colocar em conflito direitos importantes: o do proprietário de usar livremente seu imóvel e o da coletividade condominial por segurança, sossego e privacidade.
A legislação atual não é clara sobre o assunto, já que foi criada antes da popularização dessas plataformas. Isso gera incertezas jurídicas e decisões divergentes nos tribunais. Enquanto alguns defendem que esse tipo de locação fere a natureza residencial dos condomínios, outros alegam que proibir a prática compromete o direito de propriedade e a renda de muitos proprietários, explica Vanderlei Garcia Jr.
A proposta de reforma do Código Civil busca resolver essa lacuna, mas já enfrenta críticas de ambos os lados, mostrando que o tema segue em debate e sem consenso.
Airbnb e Booking defendem o direito à locação por curta temporada
O especialista observa que as plataformas Airbnb e Booking.com têm adotado posições claras no debate sobre a regulamentação do aluguel por temporada em condomínios. O Airbnb, de forma mais ativa, defende que essa prática é legal e protegida pela Lei do Inquilinato, além de estar amparada pela Constituição, que garante o direito de propriedade e a liberdade econômica.
Em nota enviada ao iG, o Airbnb afirma que "proibir ou restringir a locação por temporada viola o direito constitucional de propriedade de quem aluga o seu imóvel" (confira abaixo a nota na íntegra) .
A empresa argumenta que proibir essas locações afeta a renda de milhares de brasileiros que dependem do aluguel temporário, como aposentados e autônomos. Para apoiar seus usuários, o Airbnb oferece orientação jurídica, materiais educativos e, em alguns casos, suporte legal em disputas com condomínios.
Já a Booking.com, embora mais discreta, também apoia políticas que favorecem a economia compartilhada, desde que respeitadas as regras locais.
Ambas as plataformas buscam manter seu modelo de negócio, baseado na descentralização da hospedagem e na geração de renda, mas enfrentam crescente pressão de legisladores, autoridades e moradores que pedem mais controle sobre esse tipo de atividade.
O Portal iG tenta contato com o Booking.com para posicionamento oficiais sobre o tema. Esta reportagem será atualizada em caso de respostas.
Leia na íntegra a nota do Airbnb enviada ao Portal iG
"O Airbnb acompanha atentamente as discussões sobre a proposta de atualização do Código Civil e tem um histórico de trabalho com governos de todo o mundo, inclusive no Brasil, para estabelecer boas políticas e compartilhar boas práticas. O aluguel por temporada no Brasil é legal, regulado pela Lei do Inquilinato (Lei nº 8.245/1991). Proibir ou restringir a locação por temporada viola o direito constitucional de propriedade de quem aluga o seu imóvel. O Airbnb está comprometido a apoiar o crescimento econômico no Brasil, ajudando proprietários de imóveis a obterem renda extra ao se tornarem anfitriões na plataforma, participando ativamente da economia local com praticidade e segurança."