'Desesperador': gaúchos ficam de mãos atadas diante da catástrofe

Colapso no Rio Grande do Sul assola a vida de mais de 2 milhões de pessoas, que discutem sobre os culpados

Foto: Reprodução: Defesa Civil
Eldorado do Sul, uma das cidades mais atingidas pelas enchentes no Rio Grande do Sul

"Não é a primeira vez que essas tragédias acontecem aqui, nosso estado sabia do perigo que poderíamos passar e nenhuma medida foi tomada, mesmo sabendo das crises climáticas", diz a gaúcha Júlia Rosa, de 21 anos, ao Portal iG.

tragédia no Rio Grande do Sul assola a vida de mais de 2 milhões de gaúchos desde o dia 29 de abril.  Segundo os últimos dados da Defesa Civil, 449 dos 496 municípios foram afetados pelas chuvas no estado. Mais de 800 ficaram feridos e 149 morreram. O colapso deixou, até o momento, 617 mil pessoas fora de casa.

O Rio Grande do Sul já enfrentou problemas com as condições climáticas há não muito tempo. No ano passado, em setembro, 53 pessoas morreram após a passagem de um ciclone extratropical.

Medidas foram tomadas?

A Agência de Refugiados da ONU (ACNUR, na sigla em inglês) aponta que 30,7 milhões de pessoas foram deslocadas até 2020 por desastres relacionados ao clima no mundo todo. O Banco Mundial avalia que, em breve, 17 milhões de pessoas na América Latina terão que deixar suas casas por questões ambientais. O Centro de Monitoramento de Deslocamentos Internos (IDMC) informa que, em 2012, foram 708 mil brasileiros migrando por consequência de desastres naturais. Seriam essas mudanças todas naturais?

Em 2019, um projeto do governo do Rio Grande do Sul removeu ou alterou 480 pontos do Código Ambiental do estado. Concluíram que o melhor era flexibilizar exigências, o que enfraqueceu a proteção.

O projeto foi apresentado pelo governo de Leite e aprovado na Assembleia Legislativa do Rio Grande do Sul com 37 votos favoráveis, de um total de 55. Na época, foi aprovado uma supressão parcial ou total de matas ciliares e áreas de formação vegetal defensivas à erosão de encostas em todo o estado. Elas ajudam a impedir enchentes e deslizamentos.

Em Porto Alegre, cidade comandada pelo prefeito Sebastião Melo (MDB), que enfrentou uma enchente no ano passado, em menores proporções do que a atual, passa pelo colapso com 19 das 23 bombas dos sistemas de contenção de cheias desligadas. Além disso, a capital gaúcha tem diminuído a quantidade de funcionários do Departamento Municipal de Água e Esgotos com o passar dos anos; em 2017, eram 1.738; em 2013, eram 2.108.

Dias antes das águas inundarem grande parte do Rio Grande do Sul, a organização ambientalista Agapan (Associação Gaúcha de Proteção ao Ambiente Natural) enviou ao governo um documento com alertas e orientações para prevenir desastres. O relatório criticou as mudanças no Código Ambiental em 2019 e outras medidas da gestão atual. Entre elas estão:

  • autolicenciamento privado para 49 atividades econômicas, criado em 2021
  • a aprovação de uma nova lei que flexibiliza o Código Ambiental (deste ano), que permite a construção de barragens e açudes nas em Áreas de Preservação Permanente 
  • a falta de implementação Programa de Regularização Ambiental, previsto desde 2012 para recuperar a vegetação nos biomas Pampa e a Mata Atlântica

“Um dos grandes problemas é o assoreamento dos rios por causa de um modelo agrícola de desenvolvimento que desmata as bordas dos rios, tanto para construir casas quanto lavouras. Nossos rios estão assoreados, nossas cidades estão sendo construídas na beira dos rios, as encostas dos morros estão sendo impactadas, mesmo quando têm vegetação já tiraram as árvores grandes com raízes profundas, não é mais a mata natural”, diz trecho do documento da Agapan.

"A sensação de viver no Rio Grande do Sul tem sido desesperadora, todos os dias acordo pensando que o cenário vai ser diferente ou que as coisas vão ter melhorado, mas nada. Eu moro em Gravataí, região metropolitana de Porto Alegre, e não consigo ir para lugar algum porque as estradas estão fechadas, quando não fechadas, estão com um trânsito terrível. Acredito que seja preciso, ainda mais agora, para evitar desastres futuros, que os políticos revejam as leis que estão destruindo nosso meio-ambiente, seja reforçando e revisando as barragens, diques e muros das cidades, além de trabalhar em uma ação que alerte a população sobre esses perigos", relata Júlia ao iG.

Alertas em cima da hora

O primeiro alerta paras as chuvas no Rio Grande do Sul aconteceu no dia 26, pelo Inmet (Instituto Nacional de Meteorologia). No dia seguinte, quando começou a chover no estado, a MetSul, empresa de meteorologia gaúcha, alertou para o risco de tempo severo. No dia 28, a companhia alarmou que cenas de alagamento em 2023 poderiam acontecer de novo. 

A Defesa Civil do Rio Grande do Sul também disparou alertas no dia 28 de abril. O governador Eduardo Leite publicou um vídeo sobre as chuvas no dia 29 de abril, alertando que poderia ser a maior evento climático do estado. Contudo, apenas nos próximos dias houve a recomendação para os moradores deixarem suas casas e os planos de contingência fossem colocados em prática.

Crise climática

As chuvas foram causadas por uma combinação de fatores, incluindo uma massa de ar quente sobre a área central do país, que bloqueou a frente fria na região Sul, resultando em instabilidade e precipitações intensas e contínuas no Estado, segundo a Climatempo.

Além disso, o período entre o final de abril e o início de maio de 2024 ainda teve influência do fenômeno El Niño, que aquece as águas do Oceano Pacífico e contribui para a permanência das áreas de instabilidade sobre o Estado.

Todos esses fatores foram amplificados pelo aquecimento global, que aumenta a frequência e a intensidade dos eventos climáticos.

Reconstrução do estado

Foto: Foto: Ricardo Stuckert / PR
Presidente Lula esteve em Santa Maria, um dos municípios afetados pelas chuvas, no dia 2 de maio


No dia 9 de maio, o governador do Rio Grande do Sul, Eduardo Leite (PSDB), afirmou que serão necessários R$ 19 bilhões para a reconstrução do estado .

"Os cálculos iniciais das nossas equipes técnicas indicam que serão necessários, pelo menos, R$ 19 bilhões para reconstruir o Rio Grande do Sul. São necessários recursos para diversas áreas. Insisto: o efeito das enchentes e a extensão da tragédia são devastadores. Nas próximas horas, vamos detalhar as ações projetadas que contemplariam as nossas necessidades", afirmou Leite nas redes sociais.

No mesmo dia, foi editada a Medida Provisória (MP) 1216/24, que inclui 12 iniciativas. Entre elas estão a antecipação de benefícios sociais e trabalhistas, descontos nos juros de programas de apoio e financiamento para microempreendedores individuais (MEIs), pequenas e médias empresas, agricultura familiar e agronegócio, além da destinação de R$ 200 milhões para financiamento de projetos de reconstrução da infraestrutura e reequilíbrio das empresas através de bancos públicos.

No dia 13 de maio, o  governo Lula anunciou a suspensão do pagamento da dívida do Rio Grande do Sul com a União por três anos. Essa medida foi incluída em um projeto de lei complementar, aprovado pelo Congresso Nacional.

Gastos com impactos e não com a prevenção

Nos últimos dez anos, o  governo federal gastou R$ 11,1 bilhões para administrar as crises causadas por desastres naturais . A quantia é quase o triplo dos R$ 4 bilhões desembolsados no mesmo período para prevenir as mesmas tragédias, segundo o levantamento do Tribunal de Contas da União (TCU).

O gasto com "Gestão de Riscos e Desastres" (junção das despesas) entre 2014 e 2023 foi de R$ 15,7 bilhões. Desse total, apenas 36% foram designados à prevenção (R$ 4 bi).

Apesar do aumento de desastres ao longo dos anos, os gastos vêm caindo. Em 2014, o governo repassou R$ 2,8 bilhões para Gestão de Riscos e Desastres, contra R$ 1,7 bilhão no ano seguinte.

Os menores fundos foram registrados durante o governo Bolsonaro. Em 2021, o ministério só desembolou R$ 914 milhões. No primeiro ano do terceiro governo Lula, em 2023, o valor chegou a R$ 1,3 bilhão.

Mortes por desastres naturais

Segundo a Confederação Nacional dos Municípios,  os desastres naturais no Brasil mataram 1.997 pessoas entre 2013 e 2023, gerando prejuízos de R$ 401 bilhões ao país.

Omissão

Desde o início de 2023, só uma deputada federal destinou verbas para a prevenção de desastres devido às mudanças climáticas no Rio Grande do Sul -ao todo, 35 parlamentares compõem a bancada gaúcha na Câmara dos Deputados.

A deputada federal Fernanda Melchionna (PSOL-RS) reservou duas emendas no valor de R$ 1,7 milhão  para a elaboração de projetos de prevenção à erosão costeira e para gestão socioambiental. Em entrevista exclusiva ao Portal iG, a parlamentar contou que decidiu realizar os repasses após visitar o Vale do Taquari, local mais afetado pelas chuvas em setembro de 2023 — na ocasião, 53 pessoas morreram.  

Melchionna responsabiliza a extrema direita e o agronegócio pela tragédia no RS. 

"O (Jair) Bolsonaro é a expressão do aquecimento global. Não é só negar o aquecimento global, é fazer de tudo para piorar o aquecimento global. Ele tinha o antiministro do Meio Ambiente (Ricardo Salles), defensor do garimpo ilegal, de exportação de madeira ilegal, além dos projetos contra o meio ambiente. Era um ministro que falou em aproveitar a pandemia para passar a boiada. Tudo isso tem um impacto, né? E nós chegamos num ponto de quase não ter retorno de tudo que se perdeu de biodversidade, de enfraquecer o Ibama. O negacionismo climático que eu me refiro é expresso pela extrema-direita", opina a deputada.

E continua: "Há uma combinação dessa extrema-direita com o agronegócio do atraso, que a todo momento tenta, na Câmara dos Deputados, flexibilizar leis, como o Marco Temporal, por exemplo. Isso tem tudo a ver com o que estamos discutindo no Rio Grande do Sul. Ele permite devastar os povos indígenas, que são os principais guardiões dos biomas e, logicamente, têm impacto no aquecimento global e nas mudanças climáticas que estão postas. E, claro, tem o negacionismo neoliberal, que reconhece a existência do aquecimento climático, mas, na prática, não faz nada para combater. Pelo contrário, deixa de investir nas áreas de preservação, nos serviços públicos para atender a população, aprova projetos de flexibilização ambiental, como as leis ambientais no RS".

Segundo um relatório do Observatório do Clima, 25 projetos de lei e três PECs (Propostas de Emenda à Constituição) tramitam no Congresso, apresentando retrocessos ambientais com alta probabilidade de avanço imediato. Essas propostas incluem alterações no Código Florestal, a ocupação de áreas de vegetação próximas a rios, e mudanças nas regras de licenciamento ambiental, entre outras medidas.

Marina Silva, ministra do Meio Ambiente e da Mudança do Clima, afirmou no dia 3 de maio que o governo estavam em preparação para colocar em prática um plano inédito de gerenciamento de risco de eventos climáticos extremos. Em 2023, quando 1.942 municípios estavam sob riscos de desastres, ela defendeu a decretação de estado de emergência climática . O projeto ainda não saiu do papel.


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