Mesmo em recesso, a agenda do Congresso Nacional para este ano continua sendo um dos assuntos mais comentados nos grupos de deputados e em conversas com aliados políticos nos chamados 'cafezinhos'. Uma das preocupações dos parlamentares é a realização de uma agenda mais puxada no primeiro semestre e votações mais tranquilas no segundo, visando as eleições municipais.
Um dos projetos que devem ser prioridades na Câmara dos Deputados é o PL das Fake News, que volta ao protagonismo em Brasília em meio às vésperas das eleições e o avanço de casos de notícias falsas divulgadas nas redes sociais. A morte da menina Jéssica Vitória após notícias falsas que davam conta de um relacionamento com o humorista Whinderson Nunes também assustou os parlamentares, o que provocou uma forte pressão para regular as redes sociais no Brasil.
O relator da proposta, deputado Orlando Silva (PCdoB-SP), já está com documento pronto e chegou a despachar para a Mesa Diretora enviar o projeto à votação em agosto. Entretanto, as pressões das big techs fizeram com que deputados do Centrão recuassem e pressionassem o presidente da Câmara, Arthur Lira (Progressistas-AL), a engavetar o texto temporariamente.
De acordo com o projeto, as redes sociais devem monitorar a criação de contas falsas, além de publicações ilícitas que incitem violência, racismo, discurso de ódio e terrorismo. Fora isso, as big techs, como Meta e Google, deverão bloquear perfis com automatização — os chamados bots.
“Nós temos um texto que defende a liberdade de expressão, cria mecanismos para que o próprio usuário defenda a liberdade de expressão. Nós temos um texto que cria obrigações de transparência para que a sociedade brasileira saiba como é operado o serviço dessas big techs e o padrão de transparência nos termos das leis europeias. Não tem nada muito diferente do que as big techs já aceitaram na Europa. A proposta prevê um novo regime de responsabilidade para essas empresas”, disse Orlando Silva, em entrevista ao iG.
A principal reclamação das big techs é o trecho do texto que trata sobre o pagamento a jornalistas e produtores de conteúdo. O relatório prevê que as empresas valorizem o jornalismo e paguem pelas publicações noticiosas e verdadeiras que abastecem as redes sociais. O valor seria negociado entre as big techs e os veículos de comunicação.
“Uma remuneração do Jornalismo e a remuneração de direito autoral para artistas, que são os temas econômicos, é o que trava hoje a evolução do debate. Mas eu acredito e eu vou defender isso ao Presidente Arthur, vou defender aos líderes, é que nós procuremos juntos uma saída para criar as condições de voltar o texto no plenário da Câmara”, afirma Silva.
Na visão do advogado Juliano Maranhão, os temas propostos pelo deputado no relatório devem ser analisados com cautela e explanados de forma clara aos parlamentares e empresas. Ele defende que as regulações são para as plataformas e não contra as empresas de tecnologia.
“A atividade regulada é a das plataformas e me parece legítimo analisar com cuidado quais serão os impactos na qualidade do serviço e mesmo sobre a viabilidade das medidas que são impostas e que deverão ser adotadas por essas empresas. São vários temas difíceis e polêmicos. Por exemplo: sobre o dever de remuneração de ‘veículos jornalísticos, não é fácil definir o que é ‘conteúdo jornalístico’ ou empresa jornalística, pois há o risco até mesmo de fazer as plataformas financiarem a produção de conteúdo abusivo. As restrições à propaganda digital e direcionada poderiam afetar negativamente pequenos negócios. E um excesso de responsabilização pode constranger as plataformas a posturas conservadoras quanto a moderação de conteúdo, prejudicando a liberdade de expressão”, afirma o professor da Universidade de São Paulo (USP).
“Esses temas precisam ser pensados com muita cautela e o esforço me parece estar em viabilizar um tramite do PL que seja capaz de gerar a reflexão adequada, não em travar o PL ou o trâmite”, completa.
A parte não gera polêmica apenas na Câmara, mas também no Senado, Casa que deve voltar a discutir o texto neste ano. O criador da proposta, senador Alessandro Vieira (MDB-SE), defende que a ideia seja separada do texto original e passe a ser regida por outro projeto de lei.
“O projeto, como foi desenhado e aprovado aqui no Senado, ele tem o cuidado de não entrar na seara da opinião do conteúdo. O que o projeto faz, e eu acho que faz de forma muito correta, é atacar as ferramentas que são utilizadas principalmente para crime. Ele [projeto] está falando de contas falsas, da dificuldade de identificação daquelas pessoas que cometem crimes pelas redes, está falando da omissão das plataformas em tomar providências com relação a conteúdos que eles sabem cristalinamente que são conteúdos falsos ou que são conteúdos criminosos, além do impulsionamento ou propaganda [falsa] disfarçada velada”, afirma Vieira.
“Você teve o acréscimo de algumas coisas que na minha visão não são necessárias, embora se tenha o mérito, como o caso da remuneração do conteúdo jornalístico. É muito importante e alguns países do mundo já vêm tratando disso, mas misturar isso com regulação das ferramentas para evitar crimes e fake news, eu acho que não é o melhor caminho”, completa.
Negociações para tramitação do texto
Orlando Silva deve interromper o recesso e se reunir com Arthur Lira nos próximos dias para debater o relatório. Entre os assuntos que pautados estaria as alterações na proposta para conseguir tramitar o texto com maior agilidade.
Silva não descartou a possibilidade de realizar modificações no projeto e garantiu que poderá ouvir as big techs. O parlamentar ressalta que a proposta valerá para todos os campos políticos e ressalta o amadurecimento da ideia nos últimos anos.
“Olha, o relatório está pronto. Agora, na Câmara dos Deputados, o relatório, mesmo que pronto, pode sofrer modificações até a votação final do Plenário. É do rito, é do processo legislativo. Várias bancadas podem destacar um aspecto, pode anotar um ponto e isso deve ser definido no voto. A minha impressão é que houve, ao longo desses quase quatro anos, um amadurecimento do debate de mérito”.
Foco nas eleições e preocupações com IAs
Os casos de gravações falsas feitas por Inteligência Artificial provocaram a reação do mundo político em meio à possibilidade do uso dos aplicativos para criar vídeos e áudios falsos às vésperas das eleições. Porém, o relatório de Orlando Silva não contempla o uso das IAs.
Nos bastidores, há conversas para que o relatório abarque o uso de aplicativos de Deep Fake, como é conhecido gravações de vídeos falsas. Entretanto, as negociações ainda estão rasas e devem ser intensificadas no retorno dos trabalhos no Legislativo, em fevereiro.
Ao iG, Alessandro Vieira defendeu a regulamentação do uso da Inteligência Artificial, mas não no projeto que trata das Fake News. Ele vê a necessidade de um novo projeto e defende a aprovação antes das eleições de outubro.
“A gente tem uma expectativa da aprovação também por isso [para valer nas eleições], porque uma realidade, e eu falo muito isso dos críticos do projeto, é que se você não tiver uma lei transparente, clara, vai ter alguma resolução ou alguma decisão no TSE que vai ser aplicada muitas vezes de uma forma equivocada aí pelo Brasil afora. E a gente tem agravante que é a popularização e o barateamento do acesso às ferramentas de inteligência artificial. Já estão viabilizando vídeos e áudios de deep fake, que são uma tragédia para o processo democrático”, afirma Vieira.
“Precisamos de legislação. Acho que talvez o caminho mais eficiente seja receber o texto que vem da Câmara, fazer os ajustes apenas necessários e ter uma lei de válida. Ao mesmo tempo, se agiliza a tramitação de um projeto sobre as inteligências artificiais para cuidar especificamente desse tema e tratar com a urgência necessária”, completa.
Para Juliano Maranhão, a proposta na forma que está deve impactar fortemente as eleições deste ano e seguir um rito já previsto pelo Tribunal Superior Eleitoral (TSE). Na visão do especialista, os candidatos devem estar mais atentos ao atacar adversários e ser mais cauteloso ao publicar informações da campanha.
“A ampliação da base de usuários de plataformas de redes sociais ao redor do mundo tem direta influência na composição do debate público e exercício da democracia deliberativa, e suas implicações, para o bem ou para o mal, têm sido progressivamente observadas nos pleitos eleitorais com o passar dos anos. O ano de 2024 será marcado pela condução de eleições Municipais no Brasil, e a continuidade da tramitação do PL 2630/2020, que afeta de imediato a organização de tais plataformas, terá, evidentemente, repercussões na formação e condução do cenário eleitoral”.
“As previsões constantes no PL 2630 devem buscar sinergia em relação a disposições exaradas por parte do Tribunal Superior Eleitoral, como aquelas constantes nas recentes iniciativas de regulação de conteúdos produzidos a partir da instrumentalização de tecnologias de Inteligência Artificial”.