"Quem vive na área de milícia, vive em Estado de exceção", diz Flávio Serafini
Quase 60% do território do Estado do Rio de Janeiro sofre com as ações dos grupos armados, alerta estudo
O Estado do Rio de Janeiro vive em constante guerra contra o poder paralelo . Só em abril foram 115 mortes em tiroteios, segundo levantamento feito pelo Instituto Fogo Cruzado. Hoje, quase 60% do território do Rio de Janeiro sofre com as ações de grupos armados (milícia), segundo o trabalho conjunto realizado pelo Grupo de Estudos dos Novos Ilegalismos (GENI/UFF), o datalab Fogo Cruzado, o Disque-Denúncia, o Núcleo de Estudos da Violência (NEV/USP) e a plataforma digital Pista News.
O deputado estadual Flávio Serafini (PSOL) alerta sobre o prejuízo para a população que vive nas regiões dominadas pela milícia
. Segundo o deputado, para grande parte da população não existe Estado Democrático de Direito, e assim como o voto, outros direitos
também são negados a essas pessoas.
“Para uma parte da população do estado do Rio de Janeiro, não há Estado Democrático de Direito. Estudos recentes mostram que 57% do território do Rio estaria controlado por grupos armados, milicianos. Quem vive na área de milícias, vive sobre um Estado de exceção, onde, por meio da violência, grupos armados impõe uma série de restrições aos direitos políticos, civis e econômicos. É uma vida sobre constante coerção”.
Veja onde atuam os grupos armados no Estado do Rio de Janeiro
CV: Comando Vermelho ADA: Amigos dos Amigos TCP: Terceiro Comando Puro 5M: Milícia
O projeto de poder das milícias afeta diretamente a democracia
. Segundo o cientista político Paulo Baía, os membros da milícia contabilizam o percentual de votos na zona eleitoral da região que estão instaurados. Caso o percentual seja abaixo do considerado ideal, existe uma retaliação
nas comunidades.
“A pressão da milícia sobre determinadas áreas sociais chega ao ponto de pessoas fotografarem seu voto. E existe certa facilidade, porque as pessoas estão ali, ficam reféns desse tipo de ação. Você começou a perceber áreas que certas candidaturas não podiam entrar, só uma podia acontecer, diz Baía.
"A zona eleitoral, você até não identifica nominalmente quem votou, mas você identifica pelo percentual dos votos. Se na urna tal, que tem tantos eleitores de uma determinada localidade, se pelo menos 78% dos votos não foram para determinado candidato indicado, há uma retaliação na comunidade. As pessoas têm medo. Isso atenta contra a democracia. O voto não pode ser tutelado. A milícia restabelece essa dinâmica de voto de curral, que não é só a troca de favor político, mas ameaça de vida”, acrescenta.
Essa dinâmica de participação política sofreu alteração ao longo dos anos. De acordo com o deputado Flávio Serafini, até 2008 a milícia procurava ter uma representatividade política própria, mas que desde então a milícia tem procurado porta-vozes.
“A gente via até 2008 uma atuação das milícias cada vez mais buscando uma representatividade política própria, chefes de milícia se elegendo vereadores, deputados. De lá para cá, o que a gente tem visto é que a milícia tem procurado porta-vozes, pessoas que não são diretamente ligadas a esses grupos, às suas atuações nos territórios, mas que os representam politicamente. Sem dúvida nenhuma, a família Bolsonaro é um desses principais representantes ideológicos”, afirmou.
O enfrentamento às milícias ganhou força após a execução de Marielle Franco . Paulo Baía, reforça a importância de descobrir quem mandou matar a vereadora , e que o assassinato dela é uma tentativa de extermínio de um projeto de sociedade.
“Exterminar Marielle não foi só exterminar uma liderança que crescia, mas exterminar uma ideia de projeto de sociedade. Portanto, cobrar não apenas os executores, mas elucidar: ‘quem mandou matar Marielle?’”.
Em consonância ao doutor em Ciências Sociais Paulo Baía, o deputado Flávio Serafini afirma que o atentado à vida de Marielle , além de crime político, é uma investida frustrada de silenciar o movimento que visa dar vozes às pessoas que historicamente sempre estiveram à margem.
“Sem dúvida nenhuma, o assassinato de Marielle é um crime político, uma tentativa de silenciá-la, de frear um processo de transformação que ela cada vez mais vocalizava e representava", diz Serafini.
O deputado, entretanto, salienta que a morte da vereadora inspirou a sociedade a abraçar a "luta pelos direitos humanos, das mulheres negras na política, pela democratização dos nossos espaços políticos".
"Não foi um ponto final. Marielle é semente, ela gerou e segue gerando muitos frutos, não só em termo de representatividade política, mas também toda sociedade. (O assassinato gerou) um repúdio a essa lógica da violência, do poder autoritário, do poder silenciador, que é o plano de fundo desse projeto político que levou o assassinato de Marielle Franco", avalia.
"O assassinato é político, mas de forma alguma um ponto final. Um marco, mas um marco que fez florescer novas formas de resistência e de ação”, conclui.