Para que serve o voto?
Artigo do jornalista Marcelo Kieling analisa, de maneira crítica, a relação das pessoas com o voto e sua influência no jogo do poder
O poder não existe objetivamente no Brasil, pois nunca foi fruto de uma relação de consciência. A política, nesta terra, é a imposição da vontade de uma pessoa ou instituição sobre os indivíduos.
O voto é esta relação do inconsciente.
O voto no Brasil é a requisição pela burguesia do poder (coercitivo e político) para manter a ordem e a desorganização da massa, além de garantir a satisfação de seus interesses e de manter a sua condição de privilégio na sociedade de classes.
Com o voto, a burguesia garante a possibilidade de uma relação de injustiça e desigualdade, mas de forma harmônica.
A ideologia, usada a serviço da burguesia política, oculta os processos que provocam as desigualdades sociais, bem como fornece aos indivíduos um sentimento de identidade com base nos ideais da classe dominante, o que faz com que cada sujeito permaneça na sua posição social, sem contestação.
Com isso, a dominação ideológica atua como um instrumento de consenso entre as classes dominadas, escondendo as mais diversas contradições na relação entre a burguesia política e o proletariado.
A ideologia da burguesia política é utilizada para a tentativa de manutenção de sua hegemonia sobre as demais classes sociais.
No Brasil, este processo está sendo disseminado por meio dos mais diversos aparatos ideológicos, como a mídia e a igreja. Eles atuam como instrumentos, na tentativa de difundir e querer consolidar a dominação da burguesia política como classe orientadora das relações sociais.
Essa tentativa de dominação ideológica toma a forma de uma nuvem que encobre a real busca da exploração, da alienação e da subordinação das classes subalternas, que permanece sob o domínio exercido pela burguesia política.
A inércia da população, aliada à catástrofe governamental no combate à pandemia, gera uma enorme preocupação em todos nós.
O governo hoje é uma fábrica de contradições, de paradoxos, de arbitrariedades, de ambiguidades, de equívocos e de mal-entendidos, o que torna extremamente difícil encontrar um caminho para a recuperação do país.
Temos, muito além da pandemia, um festival de crises acumuladas com mudanças culturais, políticas e sociais que se expressam na sociedade, sobretudo na atual conjuntura de conflitos religiosos, étnicos, políticos e de gênero.
Estamos perdendo a guerra para além do vírus, com uma enorme injustiça social e uma distribuição não equitativa dos bens socialmente produzidos.
Não podemos de forma alguma deixar que o discurso burguês político tente “bestializar” as pessoas, ou seja, tornar as classes subalternas incapazes de analisar e criticar a realidade, uma vez que elas, dominadas por este discurso, não conseguem separar uma ideia própria de uma que seja reproduzida pela mídia ou outros difusores de conhecimento e informações.
Em 17 de março, o líder do governo na Câmara dos Deputados tentou “bestializar” as pessoas, ao dizer, no mesmo dia em que se registrou recorde de mortes pela Covid no Brasil, que a situação no país era “confortável”.
Precisamos mudar a atual ordem social; repensar o sistema econômico e político vigente, bem como a função social da igreja, da escola, da universidade, da força policial e militar, da família etc.
Na mídia de massas, infelizmente ainda temos a disseminação em larga escala das ideologias dominantes. Nas entrelinhas das notícias de jornal e TV, e mesmo nos mais inofensivos programas de entretenimento, estão expressas – às vezes em doses homeopáticas e outras vezes quase escandalosamente – as formas de pensamento burguês político hegemônico. Essa realidade expõe o retrato da mídia a serviço da ideologia da classe dominante e a torna instrumento preponderante na construção de indivíduos alienados. As estratégias de dominação da burguesia política utilizam o poder do dinheiro para infectar a mente da população no cotidiano. E, nesse ambiente, a ideologia é absorvida de tal forma, que transforma a audiência numa prisão intelectual.
O Estado é apenas um poder a serviço da classe dominante, uma vez que ele também passou a atender às demandas das classes subalternas, por meio da sua atuação como instância de proteção dos indivíduos e como órgão responsável pela elaboração de políticas públicas.
Isto pode explicar a necessidade de se cultivar o “analfabetismo político” em nossa sociedade.
Quando será que o papel do Estado será o de promover um constante diálogo com a sociedade, a fim de que a sua direção seja a mais próxima possível dos anseios populares?
Talvez isso só seja possível quando cada cidadão souber exercer o seu poder de voto de forma independente, sem influências nem ideologias, quando este voto for fruto de sua própria consciência!