Equivoca-se quem joga para a primeira-dama a carga de moralidade em cima dos seus recebidos na semana passada. Ela publicou em suas redes sociais, para quinhentos e setenta e três mil seguidores, os seus mimos: lingeries sensuais, mas não tanto, para não desagradar o eleitorado de seu marido. O assunto, não menos esperado, foi parar entre os mais comentados no meio digital, e um barato de questionamentos foram levantados.
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Michelle Bolsonaro extrapolou as barreiras entre os âmbitos governista e privado. Mas não esqueçamos quais ferramentas ajudaram o capitão da reserva a subir a rampa do Palácio do Planalto, pouco destacadas pelos internautas, prediletos do jogo do pudor.
Convenhamos: se ela deixa ou não de usar apetrechos sensuais não é assunto público. O que está em questão é muito mais a estratégia de comunicação do clã Bolsonaro — do qual ela faz parte — que a cor e o tamanho da calcinha. Michelle, espertamente, sabe muito bem disso.
No lugar de primeira-dama , para se aproximar de sua plateia, valeu-se de uma pitada de sensualidade, comum a todos nós, evangélicos ou não, governantes ou não, mas sem deixar de personificar o que se espera de uma primeira-dama. Caso contrário, por que ela divulgaria armas, propriamente do universo masculino, ao invés de lingeries, ligado à estética feminina?
Sabemos o que separa Michelle Bolsonaro de Marcela Temer, bela, recatada e do lar, e de Ruth Cardoso, filósofa e antropóloga. Não sejamos elitistas: é a espessura da linha que se coloca entre assuntos público e de foro íntimo. A postagem foi o jeitinho brasileiro que a esposa do militar encontrou de se aproximar de seus seguidores.
É a cordialidade de Sérgio Buarque de Holanda, estruturante das raízes do País, que coloca a família Bolsonaro como gente como a gente. Em seu livro, o historiador faz questão de sublinhar a etimologia da palavra tomada emprestada do poeta Rubén Darío — não é à toa a sua escolha. Cordial vem de cordis, relativo a coração. É o que nos faz chamar o capitão de Jair ou o senhor de sinhozinho, numa tentativa de alcançar o que é e deve ser distante, pela proteção do Estado de Direito.
As lingeries tornadas visíveis pela primeira-dama enganam na aparência. Fazem parte, contudo, de um artifício ardiloso, incrustado na formação do Brasil, que pode desembocar no totalitarismo descrito por Hannah Arendt, aos mascarar o peso das relações de poder. É aqui que mora a profundidade da trama, pouco comentada na internet, presa aos moralismos.
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Chegamos, portanto, a uma situação em que sabemos das lingeries da primeira-dama, mas desconhecemos as circunstâncias de outro mimo, o de vinte e quatro mil reais que Fabrício Queiroz depositou na conta bancária de Michelle Bolsonaro
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