Conheça as principais diferenças entre as duas turmas que compõem o Supremo Tribunal Federal
Carlos Moura/ SCO/ STF
Conheça as principais diferenças entre as duas turmas que compõem o Supremo Tribunal Federal

O Supremo Tribunal Federal ( STF ) é um só quando julga processos no plenário, com a presença dos onze ministros. Mas se divide em dois mundos diferentes quando os julgamentos são nas duas turmas. Cada uma delas tem cinco integrantes, excluído o presidente da Corte. A Primeira Turma funciona no terceiro andar de um prédio anexo à sede do tribunal. A Segunda Turma fica no andar de cima. Embora fisicamente próximos, os dois colegiados costumam tomar decisões muito diferentes sobre um mesmo assunto. É como se existissem dois tribunais dentro do Supremo.

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As diferenças são tão marcantes que renderam apelidos aos colegiados do Supremo . Por ser mais rígida em questões penais, a Primeira Turma é conhecida como câmara de gás. A Segunda Turma concentra a presença de ministros garantistas, que costumam defender o direito do réu recorrer em liberdade. Recebeu o apelido de Jardim do Éden. É lá que são julgados os processos da Lava-Jato.

Para além da Lava-Jato , as diferenças nas decisões das turmas podem ser observadas diariamente, nos mais diferentes assuntos. Por exemplo, em julgamentos sobre furto. Em 11 de setembro do ano passado, a Primeira Turma manteve condenado um réu acusado de tentar furtar um par de tênis e dezenove garrafas de cervejas vazias, avaliados em R$ 34,25. No recurso, a Defensoria Pública alegou que, pelo princípio da insignificância, o réu deveria ser absolvido. O argumento não colou.

Os ministros da turma argumentaram que o princípio da insignificância não deveria ser aplicado no caso específico porque o réu era reincidente nesse tipo de prática. Mas o valor que o acusado tentou furtar foi levado em conta para se diminuir a pena aplicada. Ele tinha sido condenado a um ano e dez meses e a Primeira Turma reduziu para onze meses, além de autorizar a substituição da pena por prestação de serviço à comunidade.

Em 12 de novembro do mesmo ano, a Segunda Turma julgou o recurso do Ministério Público contra a absolvição de um réu pela tentativa de furto de um frasco de desodorante, uma caixa de comprimidos para dor de cabeça e um sabonete líquido, avaliados em R$ 30. Os bens foram devolvidos ao estabelecimento comercial, depois da tentativa frustrada de furto.

Nesse caso, o réu também era reincidente. Tinha sido condenado a quatro meses de reclusão em regime aberto, mais pagamento de multa. Em recurso, o ministro Gilmar Mendes absolveu o acusado, mas o Ministério Público recorreu com o argumento de que o princípio da insignificância não poderia ser aplicado no caso específico, pela reincidência. A Segunda Turma manteve a decisão do relator.

"Não é razoável que o Direito Penal e todo o aparelho do estado-polícia e do estado-juiz movimentem-se no sentido de atribuir relevância à hipótese de furto de bens avaliados em R$ 30. Isso porque, ante o caráter eminentemente subsidiário que o Direito Penal assume, impõe-se sua intervenção mínima, somente devendo atuar para proteção dos bens jurídicos de maior relevância e transcendência para a vida social", disse Mendes no voto.

Preparação diferentes

Cientes dessas peculiaridades, os advogados mais atuantes no STF se preparam de forma diferente para julgamentos em cada uma das turmas. O criminalista Marcelo Leal, presença frequente no Supremo, conta que é comum preparar uma defesa diferente para entregar a cada um dos ministros, conforme o estilo de cada um.

"A gente se prepara no sentido de tentar conhecer ao máximo a postura do julgador. Chego a fazer dois ou três memoriais diferentes, e até mesmo um memorial para cada ministro, por conhecer essas idiossincrasias. A gente conhece as diferenças entre as turmas e de ministro a ministro. A partir daí, nos preparamos", explica o advogado.

As discrepâncias entre as turmas também existem em relação ao crime de descaminho – ou seja, a importação de bem permitido sem o recolhimento de impostos. Um grupo de três pessoas foi denunciado pela prática, por terem entrado no país com mercadorias estrangeiras sem terem pago os tributos devidos, calculados em R$ 14.356,51. Em recurso ao STF, eles pediram a extinção do processo. Argumentaram que, no caso, aplica-se o princípio da insignificância, já que norma do Ministério da Fazenda fixa em R$ 20 mil o valor mínimo para ações judiciais de cobrança.

O caso foi sorteado para a relatoria do ministro Marco Aurélio Mello . Como ele integra a Primeira Turma, o processo rumou para o plenário do terceiro andar. Em 10 de abril do ano passado, os ministros da turma negaram o pedido. Para Marco Aurélio, pouco importa o valor da sonegação para o crime existir. “Está-se diante da proteção do erário público, não se podendo adotar postura conducente a levar à sonegação fiscal. A tanto equivale dizer-se que é atípico o ato quando a sonegação, decorrente do descaminho, atinge substancial valor”, disse o ministro.

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Curiosamente, sete dias depois, a Segunda Turma concedeu a um réu por descaminho o direito de ter a ação penal trancada. Ele também tinha lançado mão do princípio da insignificância. O investigado respondia ao processo por ter deixado de recolher tributos no valor de R$ 19.750,41. Deixou de responder pela prática.

“No caso, o valor dos tributos federais em tese elididos pelo paciente, tal como ressaltado pelo Superior Tribunal de Justiça, seria de R$ 19.750,41, o que é inferior ao valor de R$ 20.000,00 atualmente estabelecido nas Portarias do Ministério da Fazenda para a dispensa de instauração do processo executivo fiscal contra o contribuinte renitente”, argumentou o relator, Dias Toffoli – que, na época, ainda não era presidente do STF e integrava a Segunda Turma.

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Tentativa de uniformizar entendimentos

Para tentar evitar julgamentos distintos no tribunal quando o caso é de bagatela, o plenário do STF tentou uniformizar o entendimento em agosto de 2015. Mas não houve consenso em torno de uma orientação sobre como os tribunais do país devem julgar esses processos. Com isso, os juízes devem analisar caso a caso, de acordo com parâmetros como a reincidência do réu e o uso ou não de violência para a prática do ilícito.

Na avaliação do professor de Direito Michael Mohallem, da Fundação Getúlio Vargas (FGV), as decisões diferentes entre as turmas para causas semelhantes trazem insegurança jurídica, no sentido de não ser possível prever o resultado de um julgamento. Ele ressalta que esse fenômeno ocorre não apenas na comparação entre as turmas, mas também em relação às decisões tomadas individualmente pelos ministros.

"Uma das principais críticas que o Supremo tem sofrido nos últimos anos é de individualização das decisões. Há uma fragmentação na atuação do Supremo", observou.

As turmas são responsáveis pelo julgamento de processos individuais. Já o plenário completo analisa ações de controle abstrato – ou seja, define teses que podem ser replicadas para o país inteiro. O problema é que nem sempre as teses dos processos julgados nas turmas foram definidas pelo plenário.

"Quando há maioria na turma para divergir de uma posição conhecida do plenário, é um problema de aplicação da regra pelos ministros. Quando há maioria na turma que diverge de posição conhecida pelo plenário, problema de aplicação da lei pelos ministros. Tendo posição conhecida do plenário, cabe aos ministros aplica-la nas votações das turmas, mesmo que seja contrária à posição individual dele", explicou Mohallem.

Processos sobre drogas têm decisões diferentes

As duas turmas do STF julgam habeas corpus de réus presos. Todas as terças-feiras, quando as turmas se reúnem, julga-se ao menos um pedido benefício de preso por tráfico. Réus sorteados para a Segunda Turma costumam obter mais benefícios. O colegiado concede com mais frequência pedidos para diminuir a pena, ou para transferir o preso para um regime mais brando – por exemplo, do fechado para o semiaberto. É rara a concessão de liberdade nesses casos. Mesmo porque esse tipo de recurso não permite a revisão de provas dos processos.

De acordo com Gustavo de Almeida Ribeiro, defensor público da União que atua na defesa de presos com processos na Segunda Turma, há chance de se obter algum benefício quando se trata de pessoas com pouca quantidade de droga, ou quando o réu é considerado “mula” – mesmo que o transporte da droga tenha sido feito entre países. Ou, ainda, nos casos considerados “varejo”: o usuário que, por exemplo, vende cinco pedras de crack para ganhar uma para consumo próprio.

A outra hipótese é o chamado tráfico privilegiado, que não é considerado crime hediondo, como o tráfico de drogas de um modo geral. A lei prevê penas menores para réus primários, com bons antecedentes, que não se dediquem ao crime como meio de vida e que não integrem organização criminosa. Muitas vezes os juízes de primeira instância se recusam a dar penas mais brandas a essas pessoas. O STF costuma estabelecer um tratamento mais benéfico no julgamento desse tipo de habeas corpus.

Para entender a diferença no tratamento dado pela Primeira e pela Segunda Turma aos traficantes, basta examinar casos concretos. Em junho de 2018, a Primeira Turma julgou um pedido da Defensoria Pública para transferir um condenado por tráfico de drogas do regime fechado para o semiaberto. De acordo com a defesa, o réu era primário, tinha bons antecedentes e não havia provas de que se dedicava ao crime como meio de vida. Ou seja, seria um caso de tráfico privilegiado.

O condenado atuava como “mula” internacional e foi flagrado transportando 2 quilos de cocaína. Foi condenado pelo Tribunal Regional Federal (TRF) da 3ª Região a 5 anos e dez meses de prisão, em regime fechado. Por lei, condenações a partir de oito anos de prisão são cumprida em regime fechado. Mas o sistema admite exceções, diante da gravidade do crime praticado.

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Marco Aurélio considerou que as circunstâncias do réu eram negativas e considerou “apropriado o regime inicial fechado de cumprimento da pena”. Os outros integrantes da turma concordaram em negar o pedido. Marco Aurélio, aliás, costuma conceder habeas corpus a todo tipo de crime, inclusive os cometidos com violência física. No caso de drogas, é bastante rigoroso.

"O tráfico de drogas ainda tem um tratamento muito rigoroso em relação a outros crimes. Ele é visto como o mal maior da sociedade, mesmo que não exista indícios de que a pessoa faça do crime um meio de vida. É o caso da mula", observa Gustavo Ribeiro.

Enquanto isso, em abril de 2017, a Segunda Turma julgou o habeas corpus de outro réu que integrava organização criminosa na condição de “mula”. Ele foi preso em flagrante transportando em seu carro 217 tabletes escondidos em fundo falso, equivalentes a 146 quilos de maconha. Receberia 20 mil para levar a droga de Assunção, no Paraguai, até Penha, em Santa Catarina.

O réu foi condenado a 2 anos e um mês, em regime fechado, pela primeira instância. O Ministério Público recorreu e a segunda instância aumentou a pena para 5 anos, 2 meses e 15 dias de prisão, também em regime fechado. No STF, Lewandowski concordou com o pedido da defesa e restabeleceu a pena inicial. Os demais ministros da Segunda Turma concordaram. No voto, Lewandowski ponderou que o simples fato de a pessoa assumir o papel de “mula” não faz dela necessariamente integrante de organização criminosa.

"O Supremo Tribunal Federal tem uma jurisprudência firme, no sentido de que esse automatismo não existe. Há que se demonstrar realmente que se trata de uma pessoa que reiteradamente presta serviço a organizações criminosas. Aquelas que, esporadicamente, transportam drogas, seja no plano interno, seja no plano internacional, não estão automaticamente jungidas a uma organização criminosa", disse o relator ao votar.

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