As eleições de 2018 trouxeram mudanças não apenas para os poderes executivos, mas também resultou na maior renovação da Câmara em sua história. Dos 513 parlamentares eleitos, 262 não estavam na Casa no ano passado. Os projetos de lei apresentados no primeiro mês de atuação também mostram diferenças em comparação ao mesmo período de 2015, quando começou a última legislatura. Com menos de 30 dias de trabalho, os parlamentares deram voz a assuntos que vão desde a exaltação religiosa e heterossexual até leis que visam dar mais segurança à mulher.
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Excluindo-se requerimentos, pedidos de desarquivamento e inclusão na Ordem do Dia, os deputados – soma-se os reeleitos com os englobados na renovação da Câmara – fizeram 99 proposições. Entre elas estão projetos de lei, pedidos de alteração na legislação, criação de comissões e pedidos de CPIs. O número é superior se comparado ao da última legislatura, quando 84 propostas foram apresentadas. Em 2015, porém, os parlamentares trabalharam uma semana a menos em fevereiro devido ao recesso de Carnaval.
O primeiro projeto de lei sugerido neste ano declara a Bíblia Sagrada como Patrimônio Nacional, Cultural e Imaterial do Brasil e da Humanidade. De autoria do deputado federal em primeiro mandato Pastor Sargento Isidório (Avante-BA), a proposta ilustra bem uma das mudanças de postura que a nova Câmara pode tomar com a renovação. A bancada evangélica nunca foi tão grande e tão forte como em 2019. São 84 parlamentares identificados com a crença cristã, nove a mais do que na última legislatura.
"A Bíblia não é um livro só do evangélico, é um livro de todos os cristãos. Ela liberta, recupera, renova e é o único livro em que o autor está próximo, de forma que é realmente um patrimônio, que serve para trazer o bem a todos. A minha questão não é religiosa, se fosse o alcorão eu também defenderia a proposta. Qualquer livro que trata de amor ao próximo, de vivência em família, de história só traz o bem para o povo", defende o deputado pastor.
Pastor Sargento Isidório e a renovação da Câmara pela exaltação religiosa
Deputado federal mais votado pela Bahia, Pastor Sargento Isidório é autor de seis proposições no primeiro mês na Câmara. Cinco propostas são voltadas para a exaltação religiosa e, entre eles, há o pedido para a criação do "Dia do Orgulho Heterossexual", um dos projetos mais polêmicos do início da atual legislatura.
Pastor evangélico, Isidório se declara um "ex-gay"e não concorda que mereça ser tratado como um homofóbico. O parlamentar mostra preocupação com a exaltação atual do homossexualismo e compara seu projeto de lei ao "Dia do Orgulho LGBT".
"Não existe o dia do homossexual? Por que não pode ter o dia do heterossexual também? Eu não sou a favor de uma pessoa ser violentada ou mesmo xingada só porque é gay, sou contra a discriminação. O problema é do jeito que a coisa está indo. Daqui a pouco, vai ser obrigado ser gay. Ninguém está fora da Constituição: o que eu acho é que temos que ter direito de pregar contra, respeitando. É um direito ser gay, mas não pode ser aplaudido por isso", explica.
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O cientista político Humberto Cardoso enxerga que serão quatro anos de muita discussão de gênero na Câmara. Para ele, a eleição de Jair Bolsonaro (PSL) reflete diretamente no Congresso.
"O Bolsonaro sempre teve um discurso de ataque ao LGBT e o que parecia um absurdo, mostrou que tem força na sociedade brasileira. Muitos deputados que, antes, tinham opinião parecida ou igual à de Bolsonaro sobre o tema, viram que podem se posicionar agora. O crescimento da bancada de Igreja dá ainda mais força para isso. Nisso eu acho que teremos uma renovação. Questões sociais e de costumes tendem a ser pouco discutidas ou discutidas com um viés muito mais religioso e conservador nesta legislatura", opina Cardoso.
Ainda que a bancada evangélica já estivesse presente na legislatura passada, nenhum projeto voltado à exaltação religiosa ou de depreciação às causas LGBT foi proposto no primeiro mês de trabalho de 2015. O próprio Jair Bolsonaro, deputado à época, fez apenas uma proposição no período, ligado a outra causa sua: os militares. O hoje presidente pedia que a faixa de mar que se estende das doze às duzentas milhas marítimas passasse a se chamar "Mar Presidente Médici – Amazônia Azul”, alusão ao general que governou o Brasil de 1969 a 1974.
Acontecimentos do momento pautam atuações dos parlamentares
As propostas dos deputados, tanto da última legislatura como da atual, muitas vezes se pautaram pelo momento. As eleições de 2014 ficaram marcadas pela denúncia do presidenciável derrotado Aécio Neves (PSDB) sobre pesquisas eleitorais e mesmo pedido de recontagem de votos do segundo turno. Os parlamentares eleitos naquele pleito mantiveram o assunto vivo.
Uma das primeiras proposições de 2015, feita pelo deputado Ricardo Barros (PP-PR), pedia que as pesquisas de intenção de votos só fossem divulgadas até 15 dias antes das eleições.
Se, em 2015, um dos assuntos mais tratados pelos deputados era mudança em regras eleitorais, em 2019 a tragédia de Brumadinho virou o tema que mais aparece nas preposições. Até uma Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) foi pedida pela deputada federal Joice Hasselmann (PSL-SP) em parceria com os legisladores Sóstenes Cavalcante (DEM-RJ) e Carlos Sampaio (PSDB-SP).
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Humberto Cardoso explica que é comum os parlamentares priorizarem matérias do momento em seus projetos de lei, uma herança que não mostra renovação da Câmara.
“É corriqueiro na política brasileira a prioridade dos deputados para assuntos que estão na boca do povo. Primeiro porque eles sabem que a chance de o projeto ir à votação é maior, pela pressão popular. Segundo que, neste início de mandato, eles querem mostrar trabalho aos seus eleitores, provando que estão atentos às necessidades. O problema é que aquela promessa de campanha, de meses atrás, muitas vezes não vai nem para o papel. Isso aconteceu agora e já acontecia em legislaturas anteriores”, explica Cardoso.
Defesa da Mulher ganha mais força com renovação da Câmara
A renovação da Câmara trouxe mais força para a bancada feminina, que saltou de 51 para 77 parlamentares. Com isso, os projetos de lei que visam dar mais segurança às mulheres apareceram logo no primeiro mês. A deputada Leandre (PV-PR), por exemplo, propôs que as delegacias especializadas no atendimento à mulher obrigatoriamente sejam instauradas também nas microrregiões dos estados. Atualmente, apenas as capitais possuem o serviço.
"A nova lei praticamente obrigou os partidos a destinarem 30% do fundo eleitoral a candidaturas femininas. O resultado prático não teve tanto sucesso, mas é fato que aumentou a representatividade da mulher no Congresso. O problema é como se dará essa representatividade. Serão causas feministas? Muitas eleitas são do PSL, partido que tende ao conservadorismo . O tempo vai dizer o barulho que as deputadas eleitas podem fazer", diz o cientista político Humberto Cardoso.
Curiosamente, a preocupação com a violência contra a mulher também partiu de um deputado homem. Capitão Alberto Neto (PRB-AM) propôs uma modificação na Lei Maria da Penha para que ocorra o monitoramento eletrônico como meio de fiscalizar o cumprimento das medidas protetivas, bem como para disponibilizar mecanismo como “botão de pânico” para as vítimas. A ideia do deputado é que vítimas de agressão possam chamar a polícia por meio de um dispositivo que lance um alerta diretamente às delegacias.
Reforma da Previdência pode "travar" os Projetos de Lei
O cientista político acredita que haverá uma diminuição de Projetos de Lei nos próximos meses. O fenômeno, segundo Cardoso, se dará por dois principais motivos: discussão de temas da legislatura anterior no plenário e negociações para a reforma da Previdência.
"O governo já mandou dois textos para a Câmara: o projeto anticrime do ministro Sérgio Moro e a reforma da Previdência do Paulo Guedes. Os dois são fundamentais para mostrar a força que Jair Bolsonaro tem com os deputados. A negociação dos líderes com os parlamentares trava a discussão de novos projetos. Além disso, o presidente Rodrigo Maia deve abrir para votação de projetos de legislaturas passadas que estão na gaveta há muito tempo. Tudo isso tira o ímpeto dos parlamentares de trazerem novidades", explica.
A diminuição de proposições também aconteceu na legislatura anterior, com as denúncias da Operação Lava Jato e o processo de impeachment da então presidente Dilma Rousseff.
"A renovação, com muitos deputados não conseguindo a reeleição, tem a ver com a queda de projetos também. Muitas propostas visam arrecadar fundos ou exaltar cidades onde o parlamentar tem a sua base política. Ao não fazer isso, ele passa a ser mal visto, vira um traidor e perde voto para a próxima eleição", diz Cardoso.
Presidente da Casa, Rodrigo Maia busca nas lideranças uma "balança" para controlar o ímpeto dos deputados que fazem parte da renovação da Câmara . Buscando um entendimento para colocar em votação o quanto antes o texto da reforma da Previdência, ele sugeriu a Bolsonaro que Joice Hasselmann (PSL-SP) se tornasse a líder do governo no Congresso. A aposta de Maia é que a deputada em primeiro mandato consiga colocar no mesmo diálogo os novatos com os já experientes da Câmara.