A Cracolândia, ponto de consumo de crack no centro de São Paulo, é ocupada por pessoas em situação de rua desde 1990. Naquele ano, surgiram as primeiras aglomerações, no bairro da Luz. Mais de trinta anos depois, o problema persiste, mas em outro endereço: a Praça Princesa Isabel. Nos últimos tempos, o local vem sendo palco de diversas ações policiais de dispersão e repressão ao tráfico.
Desde a formação da Cracolândia, políticos de diversos partidos passaram pela prefeitura de São Paulo. Muitos tentaram acabar com a Cracolândia — alguns, como João Doria (PSDB), chegaram até a prometer que o fariam. Foram diversas estratégias diferentes, das mais repressoras, como a "Operação Dor e Sofrimento", até as mais acolhedoras, como o programa "De Braços Abertos", lançado por Fernando Haddad (PT). Mas, até hoje, nenhum deles conseguiu.
Afinal, seria possível acabar com a Cracolândia? Talvez sim. Mas, para isso, seria preciso pensar em uma estratégia que contemplasse a complexidade que o problema merece, segundo o psicólogo e redutor de danos Bruno Logan. Para ele, desde o surgimento da Cracolândia, o único tipo de intervenção que o Estado levou para aquele território foi de ordem militar — o que não leva e nunca levou a nada.
"Seja pelo uso de drogas, pelos prostíbulos ou por qualquer outra questão, a polícia sempre arruma alguma justificativa para chegar lá batendo e atirando. Eu acredito que a Cracolândia ainda persiste justamente por isso — pelo fato de o poder executivo querer dar uma resposta simplista, de repressão, a um problema complexo", afirma.
Para o especialista em segurança pública Rafael Alcadipani, professor da FGV (Fundação Getúlio Vargas), a questão também é bastante complexa. Ele acredita que ações de reordenamento urbano, em conjunto políticas de saúde, são de suma importância para combater a Cracolândia. Mas, sobretudo, deve-se pensar em esforços para desestabilizar o tráfico de drogas — sempre tendo em vista, claro, a preservação de direitos.
De acordo com Alcadipani, pela primeira vez, a polícia está tendo uma ação mais "inteligente" nesse sentido. Isso porque os agentes estariam agindo constantemente e prendendo os traficantes de forma estruturada e organizada. "É uma medida que, a longo prazo, funciona, porque o traficante não tem paz. E, onde ele não tem paz, ele vai embora."
Logan discorda frontalmente. "Eu fico bastante preocupado com essa questão de 'enfraquecer o tráfico', tentar repreender. É claro que ninguém é contra que haja alguma ação de repressão ao tráfico. Mas, é preciso falar sobre a ineficácia do proibicionismo . Não importa o que se faça, onde houver demanda, haverá oferta. Na Coreia do Norte, a Bíblia é proibida e, mesmo assim, o livro é vendido clandestinamente. Talvez a melhor solução seja realmente a descriminalização das drogas."
Descriminalização do crack
Para Alcadipani, o combate ao narcotráfico, ou a chamada guerra às drogas, foi ganha pelos traficantes — que, mesmo com toda a repressão, seguem no controle de cartéis gigantescos e levando substâncias ilegais para os quatro cantos do mundo. Mas, segundo ele, drogas "muito nocivas", como o crack, ou a própria cocaína, não deveriam ser legalizadas. Além disso, a sociedade brasileira é muito conservadora, e seria muito difícil que isso acontecesse, de qualquer maneira.
Logan, por sua vez, tem uma visão diferente. Ele ressalta que, ao contrário do que muitas pessoas pensam, legalizar não é sinônimo de vender, distribuir. Legalizar é, na realidade, tirar o controle de uma substância das mãos do tráfico e colocar nas mãos do governo.
Em um de seus vídeos — ele tem um canal no YouTube sobre redução de danos —, Logan aborda um possível modelo de legalização do crack baseado no relatório de Rolleston, de 1926. O documento propunha que médicos ingleses poderiam prescrever doses regulares de heroína àqueles que fossem dependentes da droga. Assim, o paciente rompia o vínculo com o tráfico e era inserido dentro do sistema de saúde, com acesso a uma equipe multidisciplinar composta por médicos, psicólogos, assistentes sociais, entre outros.
"A realidade é que, quanto mais se tenta reprimir alguma substância, maior será o lucro, e maior será a violência. A maconha, por exemplo, tem vários efeitos medicinais, terapêuticos e afins. Mas, a repressão à maconha mata. Mata de bala perdida até quem nunca nem sequer experimentou maconha. O crack segue a mesma lógica", diz.
"Ao proibir e reprimir o crack, o único resultado disso serão pessoas usando um crack mais prejudicial, indivíduos com problemas de dependência tendo contato com o crime organizado, o fortalecimento do crime organizado, troca de tiro de traficante com a polícia e por aí vaí. Não tem como um negócio desses dar certo", completa.
Planos factíveis
Logan admite, no entanto, que ainda que fosse proposto um modelo de legalização do crack, seria muito difícil tornar isso um plano factível. O Brasil ainda está muito longe de legalizar até mesmo a maconha, que, atualmente, é permitida em diversos países, incluindo nosso vizinho, o Uruguai.
Diante das circunstâncias, ele acredita que a melhor saída seja investir em medidas que darão dignidade aos moradores da Cracolândia, possibilitando que eles tenham acesso a direitos básicos, como moradia, trabalho e saúde, mas também esporte, lazer e cultura — algo semelhante ao que tentou fazer Fernando Haddad por meio do programa "De Braços Abertos". De acordo com o redutor de danos, o uso de crack é, sim, um problema — mas, geralmente, não é a droga que faz com que as pessoas vivam na Cracolândia, sem perspectiva de vida . "Pensar assim é inverter a lógica".
"Se você sentar com um morador da Cracolândia e perguntar por que ele está lá, em um primeiro momento, ele vai dizer que o crack arruinou a vida dele, porque esta é a resposta mais socialmente aceita. Mas, se você conversar a fundo com ele, vai descobrir que, por trás disso, há uma sucessão de tragédias que o levaram até aquele lugar. Ele vai te falar algo como: 'Eu fugi de casa com 10 anos porque meu padrasto era alcoólatra e batia na minha mãe, fui morar na rua, fiz um pequeno assalto, fui para a FEBEM [Fundação Estadual para o Bem-Estar do Menor], saí, voltei para a rua de novo, tive contato com o crack e aqui estou. Ou seja… o crack é só mais um elemento", afirma.
"Inclusive, se for tirado o crack dos moradores da Cracolândia, não se está melhorando em nada a vida dessas pessoas. O que se está colocando no lugar? Acho que o que o Haddad fez foi interessante. Primeiro, você dá dignidade para aquele sujeito. Moradia, trabalho, documento, educação, saúde… para depois pensar na questão do crack. Minha única crítica ao programa — muito severa, por sinal —, é que houve pouco financiamento. Foi possível ajudar entre 200 e 250 pessoas, das cerca de 4 mil que habitavam a Cracolândia na época", completa.
Internação involuntária X cuidado em liberdade
Em paralelo a medidas que deem dignidade aos moradores da Cracolândia, há outro aspecto muito importante a ser discutido: estratégias para curar, ou tratar a dependência química. Grosso modo, há basicamente duas maneiras de se fazer isso: por meio da internação involuntária e pelo chamado "cuidado em liberdade".
A internação involuntária, como o próprio nome sugere, é a internação de um dependente químico em uma clínica de reabilitação sem que haja o consentimento dele. Desde abril, a Prefeitura de São Paulo internou de maneira involuntária mais de 20 adictos da região da Cracolândia. Os pacientes foram levados para o Hospital Municipal da Bela Vista, na região central da cidade, onde permanecerão por, no máximo, 90 dias.
"Caso os familiares de um dependente químico considerem que ele representa um risco a si mesmo e à sociedade, é possível solicitar autorização judicial para interná-lo, mesmo contra a sua vontade", diz o psiquiatra Ronaldo Laranjeira, PhD em Dependência Química.
"A esta medida se dá o nome de internação compulsória. Vale ressaltar que a medida só pode ser aplicada se houver laudo médico que a justifique, com a descrição dos motivos", completa.
Laranjeira defende a internação compulsória em alguns casos, quando o dependente químico se encontra em situação de extrema vulnerabilidade — muito doente, confuso ou em estado psicótico, representando, assim um perigo a si mesmo e aos outros. Segundo ele, pesquisas sugerem que, cerca de 7 a 10 dias após uma internação involuntária, em aproximadamente 90% dos casos, o paciente muda de ideia. Ou seja, uma internação que antes era involuntária se torna voluntária. Ainda de acordo com o médico, diversos estudos mostram também que a internação involuntária é tão eficaz quanto a voluntária no tratamento da adicção.
Logan, por outro lado, acredita no cuidado em liberdade. Para ele, a estratégia é a mais eficaz para lidar com a dependência química daqueles que não querem, ou não conseguem, procurar tratamento voluntariamente. A medida consiste na inserção do adicto em um cuidado de saúde, como os CAPS (Centros de Atenção Psicossocial), por exemplo. O objetivo é que o paciente faça um uso controlado e seguro da substância que provoca a sua dependência.
Em países mais desenvolvidos, como Alemanha, Austrália, Canadá, Dinamarca, Espanha, Holanda e Suíça, há inclusive, as chamadas "salas de shoot ", as "salas de consumo seguro de drogas com risco mínimo". Nos locais, dependentes químicos fazem uso de drogas pesadas, como heroína e cocaína, sob supervisão médica. Os equipamentos, incluindo agulhas para injeção, são limpos e oferecidos gratuitamente pelos abrigos.
"Se a pessoa usa droga na rua, ela foge da polícia, foge de comerciante, gera confusão no bairro… nessas salas, ela está em um ambiente seguro", afirma Logan. "Se um dia ela estiver lá, fazendo uso de droga e decidir, por conta própria, que quer parar, ela já está totalmente amparada por toda uma equipe multidisciplinar."
"Mas agora eu te pergunto: que político vai fazer uma sala de uso seguro no Brasil? Nenhum", diz o redutor de danos. "A população é desinformada sobre drogas — e é do interesse de alguns grupos que a sociedade permaneça assim, na ignorância. A guerra às drogas gera lucro. E, infelizmente, muito sangue ainda será derramado."
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