Em 2019, MP alertou sobre perigo de carros na dispersão da Sapucaí

Acidente envolvendo carro alegórico da Série Ouro, antigo grupo de acesso do RJ, matou Raquel Antunes da Silva, de 11 anos

Foto: Fotos: Reprodução/Twitter
Raquel Antunes da Silva, de 11 anos, morreu após ser imprensada por carro alegórico

Não foi por falta de aviso. Desde 2019 que a Promotoria da Tutela Coletiva da Infância e da Juventude, por meio de recomendações, chama a atenção dos organizadores do carnaval e órgãos públicos para o perigo dos carros na área da dispersão. Foi a 200 metros do portão do Sambódromo, na Rua Frei Caneca, que a estudante Raquel Antunes da Silva, de 11 anos, na noite da última quarta-feira, dia 20, foi imprensada entre um veículo da Escola de Samba Em Cima da Hora, da Série Ouro, antigo grupo de acesso, no primeiro dia de desfile. A menina morreu na tarde desta sexta-feira.

Na Recomendação 01/2019, assinada pela promotora titular da infância, Rosana Cipriano, oito órgãos são orientados a zelar pela proteção às crianças e aos adolescentes durante o megaevento do carnaval. Entre os 13 itens listados, está o de "providenciar seguranças aos carros alegóricos para evitar que crianças e adolescentes se coloquem em riscos, especialmente, nos momentos de concentração e dispersão das escolas de samba".

Segundo a promotora Rosana Cipriano, embora o documento seja de 2019, ele continua sendo válido. Além disso, todos os anos, o MPRJ envia ofícios, por e-mail, aos ógãos responsáveis pelo megaevento, relembrando-os sobre suas responsabilidades. São eles: Liesa, Liga-RJ, Riotur, Secretaria Municipal de Assistência Social, Guarda Municipal, Polícia Militar e outros.

"Não é porque há novas edições dessas recomendações que são revogadas. Pelo contrário, elas se complementam. Damos ciência a todos sobre suas responsabilidades, fazendo um papel preventivo estratégico. Isso faz parte do nosso cuidado com o público infanto-juvenil. Cobramos resposta de tudo. O que aconteceu com a Raquel nos deixou consternados", lamentou a promotora, em entrevista ao EXTRA.

Ao ser perguntada sobre a alegação da Liga-RJ, em nota, de que não seria responsável pelos arredores, a promotora contestou:

"O evento tem começo, meio e fim. Não se pode alegar que ocorreu o episódio extramuros, pois está dentro da perspectiva do evento", explicou ela, ressaltando que o carnaval é importante para a cidade e que o trabalho do MPRJ, junto com outras promotorias, é colaborar para um megavento em segurança.

Partiu da promotora o pedido ao juiz de plantão da Vara da Infância e da Juventude para que os carros alegóricos sejam escoltados pelas escolas de samba e o reforço dos arredores pela Polícia Militar e a Guarda Municipal.

"Mesmo as crianças e adolescente que estão fora do ambiente do Sambódromo estão ali por conta do evento, dessa forma, elas precisam ser salvaguardadas. Cada um tem sua responsabilidade. Até o evento terminar, os agentes fiscalizadores, como o MPRJ e o Judiciário, com os relatórios de todos os envolvidos em mãos, vão propor as medidas judiciais ou extrajudiciais para quem não cumpriu com seu dever de proteção", concluiu Rosana, lembrando que o descumprimento também pode ocasionar na cobrança de eventuais multas.

TAC do MP com bombeiros pode ter sido descumprido

Além da infância e da adolescência, outras promotorias, dentro de suas atribuições, estão observando o descumprimento de outras normas. O promotor Rodrigo Terra, titular da 2ª Promotoria de Defesa do Consumidor, lembra que, em dezembro de 2017, foi celebrado um termo de ajustamento de conduta (TAC) com o Corpo de Bombeiros, no qual a corporção deveria vistoriar os carros alegóricos, a partir do carnaval do ano seguinte. Segundo o documento, a fiscalização ocorreria 10 horas antes do início do desfile. Diz o documento que a vistoria tinha como fim "a constatação da inteira conformidade dos mesmos (carros alegóricos) com as normas técnicas de segurança, incluindo as concernentes à estrutura, incêndio e capacidade de lotação dos carros, devendo, uam vez cosntatada alguma irregularidade, vedar a participação dos mesmos nos desfile".

No entanto, o próprio Corpo de Bombeiros informou ao GLOBO que, nem o carro alegórico que imprensou Raquel, nem os demais carros alegóricos da Série Ouro que desfilaram na primeira noite do carnaval, na Marquês de Sapucaí, foram vistoriados e receberam autorização da corporação para entrar na Marquês de Sapucaí. Por três vezes, de acordo com os bombeiros, houve uma tentativa de notificar a Liga-RJ para informar que nenhuma das escolas do antigo Grupo de Acesso pediram a vistoria para suas alegorias. Por conta disso, nenhum deles teria autorização para desfilar.

Segundo Rodrigo Terra, o Corpo de Bombeiros tem o dever de ofício de impedir que o veículo seja usado no desfile, caso não esteja em condições ou não tenha autorização.

"Neste TAC, inclusive, há a exigência de que o Corpo de Bombeiros tenha militares especializados em mecânica e elétrica para ver as condições dos carros alegóricos. É lamentável que acidentes com carros alegóricos continuem acontecendo. Esse tipo de tragédia que aconteceu com a menina (Raquel) não era para estar acontecendo", lamentou o promotor.

Segundo Terra, se ficar caracterizado o descumprimento do TAC, o Corpo de Bombeiros estará sujeito a uma multa. A promotoria vai apurar o fato e dar o direito de defesa à corporação.

Promotorias nas esferas criminal e da tutela coletiva estão aguardando o fim do inquérito policial para também cobrar providências.

O ‘Embarque no famoso 33’ já havia apresentado problemas ainda no desfile: houve dificuldade de movê-lo na concentração e no próprio desfile na Sapucaí durante metade da apresentação. Antes de passar pela Avenida, o carro precisou se movimentar ao menos sete vezes até ser posto dentro do Sambódromo.

Em depoimento prestado também na 6ª DP (Cidade Nova), o motorista José Crispim Silva Neto, coordenador de dispersão da Liga-RJ, contou que, antes de Raquel ter sido imprensada contra um poste, ouviu pessoas gritando “Para o reboque, tem uma menina em cima do queijo” e “Tem criança em cima do carro”. Ele relatou ainda que a menina foi a única das cinco crianças que não conseguiu descer a tempo de o carro alegórico da Em Cima da Hora colidir e chegou a vê-la caída no chão com fraturas expostas nas pernas.

No depoimento, ao qual o EXTRA teve acesso com exclusividade, José Crispim Silva Neto contou que, por volta de 22h50, estava caminhando pela Frei Caneca ao lado esquerdo do reboque que estava puxando o carro alegórico da Em Cima da Hora. Ao ouvir os gritos, ele afirmou que a alegoria estava devagar e logo parou. As outras quatro crianças então desceram do carro, mas Raquel não teria conseguido, sendo imprensada contra o poste.

José Crispim Silva Neto diz ter corrido para o lado direito do carro e depois ido chamar ajuda para a menina. Nesse momento, um coronel do Corpo de Bombeiros para um dos postos médicos da Secretaria Municipal de Saúde (SMS) no Sambódromo e, de lá, encaminhada ao Hospital Municipal Souza Aguiar, também no Centro do Rio.

O motorista disse ainda que é comum que diversas crianças esperem a passagem de carros alegóricos para subir e tirar fotos. Ele ressaltou que não é sua função guiar o reboque e estava no local tão somente para acompanha-lo.

Segundo a Polícia Civil, Raquel sofreu luxação exposta no tornozelo esquerdo, fraturas expostas dos fêmures e fratura de rádio distal esquerda. Ela passou por uma cirurgia para a amputação de uma das pernas e teve a morte confirmada, às 12h10 desta sexta-feira, dia 22.

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