'Faraó dos bitcoins' ignorou alertas sobre atividades ilegais, afirma MPF
Contadores e advogados avisaram, em 2018 e 2019, sobre a necessidade de regularizar as operações do grupo
Durante o período de um ano, entre abril de 2018 e março de 2019, Glaidson Acácio dos Santos, conhecido como "faraó dos bitcoins" , foi alertado pelo menos três vezes sobre o caráter ilegal das operações da GAS Consultoria, empresa que prometia lucro mensal de 30% aos investidores mediante supostas transações com criptomoedas. A informação consta na denúncia elaborada pelo Ministério Público Federal (MPF) contra o ex-garçom, que está preso desde o fim de agosto, e outros 16 comparsas, incluindo a esposa de Glaidson, a venezuelana Mirelis Yoseline Diaz Zerpa. A Justiça Federal transformou todo o grupo em réus por crime contra o sistema financeiro nacional e organização criminosa.
O documento obtido pelo Globo, assinado por seis promotores do Grupo de Atuação Especial de Combate ao Crime Organizado (Gaeco), traz detalhes sobre os avisos recebidos pelo ex-garçom a respeito das atividades irregulares da empresa. Em maio de 2018, um mês antes de a GAS Consultoria ser formalmente aberta, mas já com os negócios do grupo a pleno vapor, um escritório de consultoria jurídico-contábil explicou, após contato por e-mail, que a atuação deveria ser registrada junto ao Banco Central, o que nunca ocorreu.
"Esta consultoria tem por objetivo a legalização de uma sociedade corretora de títulos e valores mobiliários, preparação de plano de negócios, apoio em entrevista técnica e registro de empresa junto ao Banco Central", dizia a proposta de contrato enviada pelo escritório para Glaidson. Não há indício, contudo, de que as tratativas tenham ido à frente naquele momento.
Menos de um ano depois, em fevereiro de 2019, outra empresa de contabilidade contratada por Glaidson voltou a indicar a necessidade de submeter as atividades da empresa à Comissão de Valores Mobiliários (CVM), "para fins de legalização da atividade como corretora/distribuidora credenciada". Na mesma ocasião, foram sugeridas alterações no modelo de contrato utilizado pela GAS devido a problemas relativos à "real caracterização da atividade desempenhada".
"Está muito direto que o dinheiro será investido somente nas plataformas para aquisição da moeda Bitcoin e está um pouco contratidório com a única atividade descrita no objetivo social da empresa, que é de investimento em tecnologia", pontuaram, à época, os especialistas, entre outros conselhos para Glaidson relativos à elaboração dos contratos e outras documentações. Mais uma vez, não há notícias a respeito da adoção de qualquer uma das propostas do escritório.
Por fim, em abril de 2019, um contador enviou áudios a integrantes do grupo em que também frisava a "necessidade de autorização junto aos órgãos reguladores" para que a GAS pudesse operar. "O primeiro ponto é o que seria uma pirâmide financeira, como ela é estruturada e, sobretudo, como não ser uma pirâmide financeira", explicava o profissional no início da gravação. "Esse projeto é lindo e com um futuro tremendo, mas está exposto. Se a CVM bater na porta de vocês...", alertava ele um pouco mais à frente. "É preciso haver uma correção imediata, um enquadramento para evitar as sanções como multa, impedimento da atividade, além de prejudicar o nome de vocês", concluiu o contador na ocasião, em tom grave.
A reação do empresário a esses apontamentos, segundo os promotores, foi taxativa: "Glaidson qualificou como impossível eventual regularização do grupo GAS, dando a entender que a burocracia seria o maior impeditivo para tanto", diz o texto da denúncia. Em um áudio gravado pelo próprio ex-garçom, ele ironiza: "Deve-se pedir a identidade de Pedro Alvares Cabral, ou, pelo menos, a do Satoshi Nakamoto" (pseudômino utilizado pelos criadores do bitcoin).
Para o MPF, essa sequência de fatos indica que Glaidson era "conhecedor do caráter ilícito do esquema". Ainda de acordo com os promotores, a resistência a respeito da regularização das atividades estava diretamente relacionada a uma redução nos lucros, já que a obtenção de autorização por parte dos órgãos reguladores tornaria o modelo de negócio "menos apelativo ao público pela redução das margens de retorno".
No último dia 5, já após o fundador da empresa ter virado réu na Justiça Federal, a GAS Consultoria enviou um texto aos investidores pelo Telegram em que dava a sua versão para as acusações. Na nota, a despeito de todos os alertas recebidos por Glaidson anteriormente, o grupo dizia: "Segundo a denúncia, a atuação da GAS, ao propiciar ganhos financeiros aos seus clientes, exigiria prévia licença das autoridades reguladoras do sistema financeiro, muito embora nunca tenha sido sequer notificada, no âmbito administrativo, para se adequar a tais regramentos".
Procurada pelo Globo, a GAS não respondeu por que não adequou as operações mesmo depois de tantos avisos. Através de nota enviada pela assessoria de imprensa, a empresa argumentou que, "ao contrário do que sustenta o MPF, sugerindo suposto conhecimento sobre a pretensa ilicitude dos fatos", os eventos narrados revelam uma "preocupação legítima" com o "desenvolvimento correto e sustentável de suas atividades". A GAS acrescenta que a busca por consultorias especializadas representaria uma "postura absolutamente incompatível, inclusive, com quem pretende ludibriar clientes, supostamente para auferir vantagem ilícita". O texto, porém, não esclarece as razões para que, dois anos após o último alerta profissional citado pelo MPF, nada ter sido feito a respeito das adequações necessárias.
Na resposta enviada ao Globo, a GAS também cita que a CVM recebeu, em 2019, uma consulta acerca das atividades desempenhadas pela empresa, fato que também consta na denúncia dos promotores. "Todavia, instaurado o procedimento interno para exame da consulta/denúncia, (o órgão regulador) jamais notificou a GAS para que se adequasse aos regramentos referentes à oferta pública de valores mobiliários, ou para que adotasse qualquer providência nesse sentido". A empresa, então, conclui: "As noticiadas prisões, portanto, traduzem a primeira providência do Estado, que em momento algum considerou a possibilidade de que as instâncias administrativas cuidassem do problema que julga existir".
Confira quem virou réu:
1- Glaidson Acácio dos Santos (preso)
2- Mirelis Yoseline Diaz Serpa (foragida)
3- Felipe José Silva Novais (foragido)
4- Kamila Martins Novais (foragida)
5- Tunay Pereira Lima (preso)
6- Márcia Pinto dos Anjos (presa)
7- Vicente Gadelha Rocha Neto (foragido)
8- Andrimar Morayma Rivero Vergel (responde em liberdade)
9- Diego Silva Vieira (responde em liberdade)
10- Mariana Barbosa Cordeiro (responde em liberdade)
11- Paulo Henrique de Lana (responde em liberdade)
12- Kelly Pereira Deo de Souza Lana (responde em liberdade)
13- João Marcus Pinheiro Dumas Viana (foragido)
14- Larissa Viana Ferreira Dumas (responde em liberdade)
15- Guilherme Silva de Almeida (responde em liberdade)
16- Alan Gomes Soares (responde em liberdade)
17- Michael de Souza Magno (foragido)