Feminicídio: Em apenas quatro meses, Rio de Janeiro contabilizou 30 vítimas
Casos aconteceram em Belford Roxo e em Tomás Coelho, na Baixada Fluminense e Zona Norte do estado, respectivamente
Trinta mulheres foram vítimas de feminicídio em todo o estado do Rio de Janeiro apenas nos primeiros quatro meses de 2021. O dado está no relatório do Instituto de Segurança Pública (ISP), divulgado mensalmente. No mesmo período do ano passado, entre janeiro e abril, foram 20 mulheres mortas. Os dois últimos casos aconteceram no domingo, dia 23, motivo de preocupação para quem luta para evitar esses casos. As duas mulheres foram assassinadas de forma bárbara. O primeiro crime aconteceu em Belford Roxo, na Baixada Fluminense. Enquanto o outro foi na comunidade JJ, em Tomás Coelho, na Zona Norte do Rio.
Segundo testemunhas, a primeira vítima, identificada como Rosane Guimarães, estava em uma festa no condomínio Jardim Ipê, no bairro Parque Roseiral, na noite de domingo, quando foi atacada a tiros. Quem estava na comemoração contou à Delegacia de Homicídios da Baixada Fluminense (DHBF) que o criminoso estava com o rosto coberto por um capuz e, após atirar na jovem, fugiu na garupa de uma moto. A polícia ainda não identificou o autor dos disparos.
Horas depois, a 30 quilômetros de Belford Roxo, Ana Carolina Sá Vieira, de 15 anos, foi morta a pauladas, na comunidade JJ, em Tomás Coelho. Segundo Ana Cristina Sá Vieira, mãe da jovem, a adolescente estava em um baile funk quando teria sido abordada pelo ex-namorado, identificado como Alexsander de Oliveira Dionizio, de 25 anos. De acordo com Ana Cristina, Alexsander teria chamado a vítima com a desculpa de querer conversar. No entanto, a jovem recusou.
Testemunhas contaram que o suspeito, que é procurado pela polícia , teria seguido Ana Carolina e a matado a pauladas em uma área de mata da favela. O corpo foi encontrado por um rapaz que procurava um cavalo no alto da comunidade.
A empregada doméstica Ana Cristina Sá Vieira, de 50, lembra que ainda pediu para a filha terminar o relacionamento com Alexsander, já que tinha um histórico de brigas, e que ele a teria agredido diversas vezes. Entretanto, a mãe da vítima teria dito para não registrar uma ocorrência por temer represálias do homem, que na época era traficante na região onde Ana Carolina morava.
"A minha filha era alegre, feliz, amava brincar. E eles se conheceram assim. No começo tudo era bom, mas ela tentou se afastar dele depois das agressões. Mas, foi tarde. Ele matou a minha filha. Eu só quero que ele pague e não faça isso com a família de mais ninguém. Solto, ele pode fazer outras mães chorarem", disse Ana Cristina, na porta do Instituto Médico Legal (IML) do Centro do Rio . Ela não teve condições de reconhecer o corpo da filha.
A Delegacia de Homicídios da Capital (DHC) está ouvindo parentes e amigos de Ana Carolina. O enterro será às 14h45, no Cemitério de Inhaúma.
'Toda vez que ele me bate e para, ele diz que vai parar'
Segundo uma empregada doméstica de 43 anos, que é amiga da família e por medo pede para não se identificar, conta que desde que Ana Carolina conheceu Alexsander — aos 13 anos — e o homem sempre foi agressivo. No entanto, as ameaças e as agressões se intensificaram nos últimos dias, após o suspeito deixar a cadeia. Ele cumpriu pena, por dois anos, por envolvimento com o tráfico de drogas. Antes de ser preso, Alexsander chegou a prender Ana Carolina por três dias em uma casa. No imóvel a adolescente sofreu sessões de espancamento e tortura.
Em abril, após o suspeito ser solto, Ana decidiu terminar o relacionamento .
"Eles namoraram por algum tempo, cerca de 2 anos, entre idas e voltas. Ele estava preso. Saiu em abril e ela pediu pra terminar. Ele ficou perseguindo, mandava recado, pegava ela na rua, batia, arrastava pelo cabelo", lembra a amiga da família, que completa:
"O pedido do término do relacionamento motivou essa tragédia. Ela já vinha sendo perseguida", destacou.
Cursando o 7º ano do ensino fundamental, Ana Carolina tinha vontade de terminar os estudos e fazer cursos profissionalizantes. Muito comunicativa, segundo a família, ela contava para os parentes os momentos de terror que vivia com o companheiro.
"Ela me dizia que, após as agressões, o cara pedia desculpas. “Toda vez que ele me bate fala que vai mudar, que não vai fazer mais”, ela sempre me disse isso", lembra a mulher.
A jovem, que faria 16 anos em 4 de outubro, foi arrastada pelos cabelos pelas ruas da favela, segundo testemunhas. Os parentes contaram que ela foi encontrada com as pernas amarradas e o rosto deformado. Após o crime, o suspeito deixou a favela porque teria sido jurado de morte pelos traficantes da localidade.
Segundo o exame de necropsia do IML, a vítima teve traumatismo do crânio, tórax e abdômen com hemorragia interna por ação contundente.
Números da violência
Segundo o ISP, em 2020, o estado registrou 78 assassinatos de mulheres no estado. Além disso, outras 270 sofreram tentativa de feminicídio. Neste ano, nos últimos meses, 86 mulheres foram atacadas e quase mortas.
A delegada Fernanda Santos Fernandes, titular da Delegacia de Atendimento à Mulher (DEAM) Duque Caxias, conta que aumentou o número de casos de violência contra a mulher durante a pandemia. A policial lembra também que “muitas vítimas acham que o companheiro ou o ex-parceiro não terá coragem de matá-la”.
"Durante a pandemia, registramos uma sub notificação dos casos. Mas temos vários casos graves de tortura, de feminicídio tentado, tortura e muitas agressões verbais e veladas. Muitas mulheres acham que elas não serão vítimas de algo pior, que é a morte. E não é verdade. Em muitos casos a violência psicológica e moral vai direto para um assassinato. Às vezes, uma única ameaça poderá ter um fim trágico. Por isso, pedimos: no primeiro sinal de violência, qualquer uma que seja, denuncie. Vá à delegacia e faça um registro. Não fique com vergonha", diz Fernanda Fernandes.
A delegada alerta para o padrão de violência contra as vítimas femininas:
"A violência contra a mulher tem algumas características: medo, vergonha de si, vergonha do que os outros vão pensar e algumas também não conseguem entender o nível da gravidade da situação. Quanto antes a vítima tomar uma medida, mais fácil será para evitar os crimes. O feminicídio não começa com um tiro. Começa com o relacionamento abusivo, uma violência psicológica. E estamos percebendo isso nos relacionamentos mais jovens."
A policial lembra que as medidas protetivas foram prorrogadas automaticamente durante a pandemia. A delegada conta também que existem mecanismos seguros para que as vítimas relatem os crimes que sofrem.
"Temos uma lei que diz que todas as medidas deferidas na pandemia estão sendo prorrogadas automaticamente. Além disso, são vários mecanismos feitos para que essas mulheres denunciem. A lei funciona e precisa ser usada. As mulheres não precisam temer."