Do tamanho de um palito de fósforo de quatro centímetros, o “ chip de beleza ” é um bastonete implantado sob a pele, geralmente nos glúteos ou abdômen. Apesar do termo associado à estética, o nome correto seria “ implante hormonal”, embora o conteúdo possa extrapolar a presença exclusiva de hormônios e alcançar até medicamentos para tratamento do diabetes – como a metformina. A prescrição pauta a contracepção, endometriose , tensão pré-menstrual (TPM), supostos desequilíbrios hormonais, além da redução dos sintomas da pré e pós-menopausa.
Essa é uma tecnologia exclusiva do Brasil, e não se encontra similares em outros países. Sobretudo, porque o dispositivo contém uma combinação de hormônios (principalmente gestrinona , um progestágeno) que são liberados diariamente de forma descontrolada no organismo; o que fez com que, por exemplo, o Food and Drug Administration (FDA) estadunidense e a Agência Europeia de Medicamentos (EMA) não o franqueassem para consumo terapêutico.
A gestrinona foi patenteada em 1966 pelo laboratório francês Roussel-Uclaf, cuja principal indicação clínica seria para o tratamento da endometriose, e se trata de um esteroide anabolizante derivado da nandrolona. Da dimensão molecular, aparenta-se a um grupo de andrógenos encontrado naturalmente no corpo. Contudo, é um progestágeno sintético.
O nome, “chip da beleza”, foi a concretização de uma percepção popular divulgada acriticamente pelos prescritores.
Do início do século XX até o presente momento, em especial com a mundialização, a indústria de tecnologia da saúde passou a buscar soluções e alternativas para a população que vive uma perspectiva bastante promissora de longevidade e qualidade de vida; caracterizando assim um novo processo de industrialização da construção do corpo; a indústria da tecnologia da beleza.
Porém, na prática, verifica-se que estudos que consagrem essas novas tecnologias não se dão em escala efetiva e, também, que resultados insatisfatórios não alteram a aplicação de procedimentos por alguns indivíduos que foram precocemente divulgados e acriticamente incorporados.
Entretanto, a adoção e a disseminação do uso da tecnologia da beleza ligada a novos produtos e procedimentos requerem o balizamento dos resultados práticos, rotineiros, dessa aplicação.
Esse novo cenário faz com que se procure organizar as condições de como se negocia o tempo, os recursos financeiros, os locais disponíveis para alimentação, as compras e a manutenção da saúde e da imagem corporal por meio da aquisição de insumos e técnicas cosméticas com a finalidade de (re)construir o corpo na perspectiva de objeto de desejo, inserção ou ascensão social.
Nesse contexto, o culto ao corpo está diretamente associado à imagem de poder, beleza e mobilidade social, sendo crescente a insatisfação das pessoas com a própria aparência.
O criador da abordagem esquemática do “chip da beleza” é o médico ginecologista baiano Elsimar Coutinho, que morreu de Covid-19 em 2020. Ele liderou o Centro de Pesquisa e Assistência em Reprodução Humana, o CEPARH, que nos anos 1980 esteve envolvido com campanhas de esterilização em massa supostamente destinadas a mulheres negras e pobres. Entre as peças de divulgação, há uma série de mensagens que associam imagens de crianças, pessoas pretas e indígenas à pobreza e à criminalidade.
O médico chegou a defender que a campanha de controle de natalidade que sua instituição executava, auxiliou na diminuição dos indicadores de violência no estado da Bahia. Anos adiante, Elsimar com a tecnologia já consagrada pelas suas pesquisas privadas desenvolveu uma nova versão com a gestrinona, cuja finalidade seria para contracepção ou cessação e tratamento de doenças decorrentes do ciclo menstrual. Entretanto, acoplava-se uma alteração da composição corporal com aumento da massa muscular, redução de gordura, celulite e flacidez.
O boom foi no início dos anos 2000 com a jornalista Marília Gabriela como a primeira grande celebridade divulgadora. Depois, as sensualizadoras de palco do extinto programa Pânico na TV, as “Panicats”, ampliaram a publicidade e reforçaram sua associação com a projeção da estética corporal.
Cabe lembrar que nas décadas de 20, 30 e 40 do século passado celebravam-se terapias com enxertos de glândulas de animais e uso de hormônios para corrigir supostos “defeitos” de pessoas consideradas desviantes, ou até degeneradas, numa espécie de aplicação prática da eugenia, a chamada opoterapia . Ideais eugênicos, hormônios e terapias milagrosos com fins estéticos seguem paripassu em pleno século XXI, veja o frenesi em torno da “soroterapia” ou terapia endovenosa com minerais, vitaminas e aminoácidos – um verdadeiro escárnio à ciência.
Como repercussão colateral ao corpo, esses implantes hormonais manifestam aumento de oleosidade da pele e do cabelo, acne, queda de cabelo (alopecia), dislipidemia com notável diminuição do bom colesterol (HDL) e aumento do ruim (LDL) e triglicerídeos, hipertensão arterial, infarto, arritmia cardíaca, acidentes cerebrovasculares, insônia, transtornos ansiosos, agressividade, câncer em órgãos reprodutores, de mama e fígado; e em mulheres, alterações no timbre da voz (disfonia), crescimento excessivo de pelos (hirsutismo), hipertrofia do clitóris e virilização no formato do corpo e rosto. Digo em mulheres, porque essa terapia foi estendida para homens com a promessa de melhora do desempenho esportivo (doping?), e ainda um boost no perfil da testosterona ou tratamento da andropausa assemelhando-a à uma menopausa do sexo masculino.
Em novembro de 2021, a Sociedade Brasileira de Endocrinologia e Metabologia (SBEM) não reconheceu o uso terapêutico da gestrinona.
Em dezembro de 2021, a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA), proibiu a propaganda de produtos à base de gestrinona, regulado pela Resolução no. 4.768.
Em julho de 2022, a Diretoria Colegiada da ANVISA considerou a gestrinona um anabolizante.
Em abril de 2023, o Conselho Federal de Medicina (CFM) vetou a prescrição médica de terapia hormonal e anabolizantes com objetivos estéticos, em pacientes sem deficiência comprovada de hormônios.
Em dezembro de 2023, um pool composto por sete entidades médicas, quais sejam, Associação Brasileira para Estudo da Obesidade e Síndrome Metabólica (Abeso), da Sociedade Brasileira de Endocrinologia e Metabologia (SBEM), da Federação Brasileira das Associações de Ginecologia e Obstetrícia (Febrasgo), além das sociedades de Medicina do Exercício e do Esporte (SBMEE), de Diabetes (SBD), de Urologia (SBU) e de Geriatria e Gerontologia (SBGG); emitiu um parecer enviado para ANVISA enfatizando que não existe dose segura de hormônios para procedimentos estéticos ou de melhoria de performance física.
Em abril do ano corrente, a Gerência-Geral de Monitoramento de Produtos Sujeitos à Vigilância Sanitária (GGMON) publicou o ALERTA, no. 42024, destacando que implantes hormonais para fins estéticos e de desempenho podem ser prejudiciais à saúde e não há comprovação de segurança e eficácia para essas finalidades.
Em 18 do mês em curso, a ANVISA proibiu a comercialização, manipulação, propaganda e uso de implantes hormonais manipulados, os “chips da beleza”, em farmácias de manipulação em todo o território nacional. A medida foi oficializada pela Resolução no. 3.915 publicada no Diário Oficial da União (DOU) e tem força de lei. A decisão foi preventiva, motivada pelo parecer retrocitado, embora a posição de CFM no ano passado não repercutiu efeitos práticos e a prescrição continuou em escala progressiva.
Se a entidade que estatui a corporação de prescritores não produziu uma condução hábil para executar a própria decisão, cabe ao Estado regular uma conduta que é potencialmente deletéria à saúde da população.
De outra parte, chama atenção que o imperativo regulatório possa prejudicar os pacientes em curso do tratamento, afinal, não parece existir uma orientação de faixa transicional para que os prescritores possam pautar suas decisões até a cessação definitiva dessa tecnologia em seus arsenais. Vale a máxima, no limite selvagem; quem prescreve é quem resolve, sabe-se lá como? E os pacientes?
Escutei questionamentos a respeito da permanência circulatória de diversos medicamentos com talhes mais prejudiciais do que os implantes hormonais, e até mesmo a autorização para venda de cigarros de combustão, em conflito com essa postura da ANVISA. E também, que se a tecnologia fosse chancelada pela indústria farmacêutica com fabricação por laboratórios do porte da Novo Nordisk (Ozempic, Wegovy) ou Lily (Mounjaro), não teria sido alvo dessa ação regulatória. E que o fato de serem produzidos por farmácias de manipulação teria facilitado a Resolução recém-publicada. Ora, por um acaso, de forma indireta e estratégica, as farmácias de manipulação não comporiam a complexa engrenagem industrial farmacêutica? Tudo é político.
Pois bem, isso será suficiente para cessar definitivamente a prescrição de hormônios para fins estéticos? Claro que não! A indústria da beleza e bem-estar movimenta trilhões de dólares anualmente, incluindo vias ilícitas e subterrâneos marginais, e por melhores que sejam os princípios éticos e legais de instituições científicas combinados ao Estado ainda não serão suficientes para enfrentar transações tão ansiosas por esses artefatos exóticos. É o que sempre digo: se temos vendedores é porque existem compradores.
Informação é prevenção. Você tem alguma dúvida sobre saúde, alimentação e nutrição? Envie um e-mail para dr.clayton@metafisicos.com.br e poderei responder sua pergunta futuramente. Nenhum conteúdo desta coluna, independentemente da data, deve ser usado como substituto de uma consulta com um profissional de saúde qualificado e devidamente registrado no seu Conselho de Categoria correspondente.
Clayton Camargos é sanitarista pós-graduado pela Escola Nacional de Saúde Pública – ENSP/Fiocruz. Desde 2002, ex-gerente da Central Nacional de Regulação de Alta Complexidade (CNRAC) do Ministério da Saúde. Subsecretário de Planejamento em Saúde (SUPLAN) da Secretaria de Estado de Saúde do Distrito Federal (SES-DF). Consultor técnico para Coordenação-Geral de Fomento à Pesquisa Em Saúde da Secretaria de Ciência, Tecnologia e Insumos Estratégicos (SCTIE) do Ministério da Saúde. Coordenador Nacional de Promoção da Saúde (COPROM) da Diretoria de Serviços (DISER) da Fundação de Seguridade Social. Docente das graduações de Medicina, Nutrição e Educação Física, e coordenador dos estágios supervisionados em nutrição clínica e em nutrição esportiva do Departamento de Nutrição, e diretor do curso sequencial de Vigilância Sanitária da Universidade Católica de Brasília (UCB). Atualmente é proprietário da clínica Metafísicos.
CRN-1 2970.
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