"Safári humano": entenda denúncia sobre mortes de civis na Europa

Turistas ricos teriam pagado cerca de R$ 600 mil para atirar em pessoas durante a guerra da Bósnia nos anos 90

Rua em Sarajevo ficou conhecida como 'beco dos atiradores'
Foto: picture-alliance/dpa via DW
Rua em Sarajevo ficou conhecida como 'beco dos atiradores'

Uma investigação foi aberta na Itália sobre alegações de que cidadãos italianos teriam viajado à Bósnia e Herzegovina na década de 1990 para participar de um “safári humano” durante a guerra no país. Segundo a denúncia, os turistas pagavam uma alta quantia para atirar em civis na cidade sitiada de Sarajevo .


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A queixa foi apresentada pelo jornalista e escritor Ezio Gavazzeni, que descreve uma “caçada humana” promovida por “pessoas muito ricas” com gosto por armas e que “pagavam para matar civis indefesos ” a partir de posições do  exército sérvio nas colinas que cercam a capital Bósnia. As informações foram divulgadas por grandes portais internacionais, como BBC e DW.

Guerra da Bósnia

Mais de 11.500 pessoas morreram até o fim do bloqueio, em 1996
Foto: Antoine GYORI/Sygma via TVP World
Mais de 11.500 pessoas morreram até o fim do bloqueio, em 1996


A Guerra da Bósnia, que ocorreu entre 1992 e 1995, eclodiu após a desintegração da antiga Iugoslávia . O conflito começou após a população bosníaca (mulçumanos bósnios), que formavam maioria, votar pela independência em relação ao governo central de Belgrado.

A decisão foi rejeitada pelos sérvio-bósnios, que comandavam a então Iugoslávia, sob domínio da Sérvia, que formou um estado paralelo. Um dos episódios mais violentos foi o cerco de Sarajevo, que durou de 1992 a 1996. Foi nesse cerco que teria acontecido o "safari humano" apontado pela denúncia.

Mais de 11 mil pessoas morreram durante o cerco de quatro anos a Sarajevo, considerado o maior massacre de civis na Europa desde o fim da Segunda Guerra Mundial e marcado por uma limpeza étnica. Ao todo, a Guerra da  Bósnia vitimou 100 mil pessoas no país.

Os conflitos terminaram em 1995 após um acordo que dividiu o país em duas entidades autônomas sob um governo central. Anos depois, diversos líderes sérvios foram julgados por crimes de guerra e genocídio .

Denúncia

Segundo a denúncia do jornalista, que serviu de base para as investigações, estrangeiros de países como Itália, EUA, Canadá, Rússia, Alemanha, França e Reino Unido participaram do "safari". Relatos apontam valores diferentes conforme o alvo, diferenciando entre homens, mulheres e crianças.

As provas reunidas por Gavazzeni incluem o depoimento de um oficial da inteligência militar bósnia e estão sendo analisadas por um promotor italiano especializado em terrorismo.

Segundo o militar bósnio, seus colegas descobriram a existência dos “safáris” no fim de 1993 e repassaram as informações à inteligência italiana (Sismi) no início de 1994. Meses depois, o Sismi teria informado que identificou turistas que saíam da cidade italiana de Trieste rumo às colinas de Sarajevo.

“Colocamos fim a isso. Não haverá mais safáris” , teria dito um agente, segundo a agência Ansa. Poucos meses depois, as viagens cessaram.

Como o jornalista descobriu?

De acordo com a BBC, Gavazzeni, que costuma investigar temas ligados ao terrorismo e à máfia, soube do caso pela primeira vez há três décadas, quando o jornal Corriere della Sera publicou uma reportagem sobre os supostos “tours de snipers”, mas sem apresentar provas concretas.

Suas investigações resultaram em um dossiê de 17 páginas com suas apurações, que inclui um relatório da ex-prefeita de Sarajevo, Benjamina Karic. Na Bósnia, a investigação local estaria paralisada.

Em entrevista ao jornal La Repubblica, Gavazzeni afirmou que “ao menos 100 pessoas” participaram da prática, e que italianos chegaram a pagar o equivalente a até 100 mil euros (R$ 600 mil) para atirar em civis.

O caso recordou um episódio ocorrido em 1992, período em que supostamente ocorria o "safari", quando o escritor e político russo Eduard Limonov foi filmado atirando contra Sarajevo com uma metralhadora. Ele estava ao lado do líder sérvio-bósnio Radovan Karadzic, que anos depois foi condenado por genocídio pelo Tribunal de Haia, por crimes de guerra.


Próximos passos

Promotores e policiais italianos agora tentam identificar testemunhas e possíveis envolvidos que ainda estejam vivos. Segundo o portal DW, deve ser apurado se entre estes supostos praticantes estavam também civis italianos.

Integrantes das forças britânicas que atuaram em Sarajevo nos anos 1990 disseram à BBC que nunca ouviram falar de “turismo de franco-atiradores” durante o conflito. Eles afirmam que seria “logisticamente improvável” trazer estrangeiros pagos para atirar em civis, devido ao grande número de postos de controle na região. Um dos soldados britânicos classificou as acusações como um “mito urbano”.