Entenda o escândalo que abala o governo de Milei na Argentina

Especialista avalia episódio como "duro golpe" na administração do país vizinho

Javier Milei, presidente da Argentina
Foto: Reprodução/ Wikimedia Commons
Javier Milei, presidente da Argentina

O governo do presidente Javier Milei  enfrenta uma das crises mais graves desde a posse, em dezembro de 2023, e apenas dois meses antes das próximas eleições legislativas.

Áudios vazados colocaram no centro de um suposto esquema de corrupção a irmã do presidente e secretária-geral da Presidência, Karina Milei , além de Eduardo “Lule” Menem, sobrinho do ex-presidente Carlos Menem e atual subsecretário de gestão institucional.

De acordo com a DW, as gravações atribuídas a Diego Spagnuolo, ex-chefe da Agência Nacional para a Deficiência ( Andis ) e advogado pessoal de Milei, indicam que contratos para fornecimento de medicamentos a pessoas com deficiência teriam sido superfaturados em troca do pagamento de propina.

Karina e Menem estariam entre os beneficiários do esquema, que movimentaria cerca de US$ 500 mil (cerca de R$ 2,7 milhões na cotação atual) a US$ 800 mil (R$ 4,3 milhões na cotação atual) mensais.

Spagnuolo aparece nos áudios reclamando do desvio de recursos dentro da Andis e afirmando ter provas que ligariam Karina diretamente à fraude. “Estão fraudando a minha agência. Estão roubando. Vocês podem fingir que não sabem, mas não joguem isso para mim. Tenho todos os WhatsApp de Karina” , teria dito.

Segundo as gravações, a propina corresponderia a cerca de 8% do valor dos contratos com o governo . Karina e Menem dividiram o percentual, sendo a maior parte destinada à irmã do presidente.

Empresários ligados à distribuidora Suizo Argentina, que intermedia a venda de medicamentos ao setor público, seriam peças-chave no esquema.

Em entrevista ao Portal iG, o professor do Ibmec SP, Alexandre Pires, afirma que a crise representa um duro golpe à imagem do governo Milei. 

“O governo começou com reformas impopulares e vinha obtendo alguns resultados econômicos positivos, com recuperação da popularidade. Agora, pesquisas já captam queda na aprovação em razão do escândalo, justamente durante a campanha para as eleições legislativas. Isso pode frustrar as pretensões de Milei de consolidar sua coalizão como força dominante, talvez até com maioria na Câmara dos Deputados”, avalia.

O professor destaca ainda que, no plano internacional, o episódio tem menor peso imediato. “O governo Milei tem concentrado esforços para se posicionar como parceiro estratégico dos EUA no hemisfério ocidental, e isso não deve mudar”, observa.

Questionado sobre possíveis impactos em negociações regionais, como no Mercosul, Pires minimiza riscos significativos. “O bloco já vinha sendo escanteado pela Argentina, então não haveria um grande impacto. Mas o episódio pode reduzir a influência de Milei sobre as lideranças de direita no Paraguai e no Uruguai”, explica.

A escalada do escândalo

O caso ganhou repercussão em 20 de agosto, quando jornais argentinos divulgaram os áudios . No dia seguinte, Milei demitiu Spagnuolo e anunciou a intervenção da Andis pelo Ministério da Saúde. Daniel Garbellini, outro diretor do órgão, também foi afastado.

Na última sexta-feira (22), uma operação de busca e apreensão realizada pela Justiça argentina recolheu documentos e apreendeu 266 mil dólares (R$ 1,44 milhões na cotação atual) em espécie com um representante da Suizo Argentina. Quatro celulares, incluindo o de Spagnuolo, foram confiscados para perícia.

Enquanto a investigação avança, Milei mantém o silêncio sobre as acusações.

Em sua primeira aparição pública após o escândalo, na segunda-feira (25), o presidente posou ao lado da irmã em um evento empresarial, sem citar diretamente o caso. Em tom agressivo, acusou jornalistas de serem “mentirosos e rasteiros” e afirmou que opositores no Congresso tentam “derrubar o país”.

Karina também não se pronunciou. Já Eduardo Menem negou qualquer envolvimento, classificou os áudios como falsos e atribuiu as denúncias a adversários kirchneristas .

Já nesta quarta-feira (27), durante uma viagem com sua irmã por Lomas de Zamora, ao sul da Grande Buenos Aires, como parte da campanha La Libertad Avanza (  LLA  ), o presidente argentino teve de ser retirado às pressas de uma carreata após ser alvo de um ataque com pedras e garrafas .



Impactos políticos e risco eleitoral

Outro ponto sensível é a percepção externa sobre governança e transparência, crucial para atrair investimentos. “Investimento é uma decisão baseada em capacidade de retorno, e o ambiente econômico não muda drasticamente por causa do escândalo. No entanto, sem o ganho eleitoral esperado, a perspectiva de avanço nas reformas liberalizantes fica menos otimista” , pontua Pires.

O silêncio adotado pelo presidente e a defesa feita por aliados também foram analisados pelo especialista. “Houve uma manifestação de que os áudios seriam falsos e que o caso será levado à Justiça. Com as eleições já em outubro, será impossível manter essa postura por muito tempo; alguma resposta contundente terá de ser dada” , afirma.

Para Pires, a crise não deve necessariamente fortalecer governos rivais de esquerda na região. “Os partidos de esquerda têm mais estrutura de apoio mútuo, mas o enfraquecimento de Milei não implica automaticamente um avanço eleitoral da esquerda” , diz.

Por fim, o professor comenta a possibilidade de responsabilização legal caso as acusações se confirmem. “Se houver crime de corrupção, Karina será julgada, ainda que ocupe um cargo no alto escalão. Se os indícios de superfaturamento forem comprovados, ela terá de responder na Justiça” , explica.

Quanto ao presidente, Pires pondera: “Com o que há no momento, nada indica sua participação, mas isso não impede que tentem acusá-lo por ser o chefe do governo”.

Momento sensível para Milei

A crise acontece em um momento particularmente sensível para Milei. Sua popularidade, já pressionada por medidas de austeridade e derrotas no Congresso, gira em torno de 41%

Com a escalada do escândalo, as eleições legislativas de 26 de outubro podem ser impactadas . Além disso, a disputa pelo governo da província de Buenos Aires, prevista para as próxima, também pode ser afetada pelo desgaste presidencial.

O episódio se soma ainda a outros problemas recentes, como as acusações envolvendo a criptomoeda $Libra – promovida por Milei e que causou prejuízo a milhares de argentinos – e a polêmica sobre empresários que entraram no país sem fiscalização alfandegária .