Opinião: Liberdade Religiosa Digital

Como a Comunicação de Massa afeta a liberdade individual de religião na sociedade de dados

Professor e juiz de Direito Fernando Antonio Lira Rangel
Foto: Arquivo pessoal
Professor e juiz de Direito Fernando Antonio Lira Rangel


Por Fernando Antonio Lira Rangel*

RESUMO

A Inteligência Artificial é uma realidade em nossos tempos. É inevitável, pois sua presença está embutida em vários dispositivos eletrônicos, como televisores, tablets e smartphones, entre outros. O uso da Inteligência Artificial tem sido responsável pela introdução de novos valores que afetam tanto a vida material quanto a espiritual das pessoas, especialmente com o influxo altamente ativo de dados. Essa realidade tornou imprescindível refletir sobre a essência da existência humana, que hoje é resultado de experiências derivadas da vida material, da vida espiritual e da vida virtual. Nesta era da hiperconectividade, a liberdade religiosa significa uma conexão sem proselitismo, mas informativa sobre a mensagem que você deseja propagar. O problema da pesquisa indaga: como a Inteligência Artificial pode contribuir para a disseminação da religião em um contexto globalizado? Como se contextualiza a liberdade individual de liberdade religiosa face à globalização e às inovações tecnológicas, particularmente no que diz respeito à Inteligência Artificial?

INTRODUÇÃO

Tertuliano (c. 155 - c. 240 d.C.), em seu texto "De Praescriptione Haereticorum" fez uma pergunta que atravessa o tempo e aporta nos nossos dias e eu permito replicá-la: O que Atenas tem a ver com Jerusalém? Na sua obra ele questiona a relação entre a Filosofia grega (representada por Atenas) e a religião (representada por Jerusalém). Essa pergunta reflete exatamente o que o nosso tema se propõe a debater, em outras palavras: O que a liberdade religiosa (Jerusalém) tem a ver com a Inteligência Artificial (Atenas)? Ou ainda, “O que o algoritmo, fruto da lógica racional, tem a ver com a revelação espiritual que decorre da essência de Deus?”

Ao propor essa pergunta, Tertuliano expressava a sua preocupação com a influência da Filosofia grega sobre a religião. Para ele, Atenas simbolizava a razão, a especulação filosófica e a sabedoria secular dos gregos, enquanto Jerusalém representava a religião. O teólogo acreditava que a filosofia grega, com a sua ênfase na lógica e na investigação racional, não deveria misturar-se  com a religião.

Na sua visão, a religião, baseada nas Escrituras e na revelação divina, não necessitava de justificativas ou análises filosóficas, pois a razão humana era incapaz de compreender plenamente os mistérios da religião. Ao perguntar "O que Atenas tem a ver com Jerusalém?" Tertuliano sugeria que a Filosofia e a Religião eram caminhos distintos e, em sua opinião, incompatíveis.

Mais tarde, outros pensadores, como Agostinho e Tomás de Aquino, argumentaram que a razão e a filosofia poderiam ser usadas para entender e aprofundar o contexto religioso e com isso poderia haver uma relação harmoniosa entre Atenas e Jerusalém.

A proposta que se faz neste estudo é a retomada da análise entre a religião  (Teologia) e a razão (Filosofia) à luz do novo cenário imposto pela Inteligência Artificial (IA). Qual a relevância desta reflexão? Há a possibilidade de conciliarmos Atenas com Jerusalém? Por quê? Jerusalém é a capital da religião, logo Tertuliano se refere à possibilidade de conciliar o apogeu  do conhecimento grego com o apogeu  do conhecimento religioso. São conciliáveis?

E aí existem três propostas de resposta que, desde a pergunta de Tertuliano até hoje, são feitas. Quais são as respostas?

Bom, há quem diga que:

1. são inconciliáveis

Esta posição é absolutamente minoritária e, é a posição adotada por Tertuliano;

2. são perfeitamente conciliáveis.

Esta é mais aceita. Tomás de Aquino e Agostinho, cada um com um discurso próprio, visualizaram a possibilidade de haver uma harmonia entre a religião e a razão. A Filosofia não deve ser interpretada como uma ferramenta a ser usada para questionar a religião ou para desafiar as crenças religiosas existentes, mas sim como uma forma de obter uma maior compreensão do divino. Ela fornece a orientação e o discernimento necessários para desenvolver uma compreensão do divino, o qual é o objetivo final dos teólogos.

3. são conciliáveis, mas uma prepondera sobre a outra.

Encontramos, ainda, alguns pensadores que sustentam que a conciliação entre a Teologia e a Filosofia existe; todavia, com uma preponderância de uma sobre a outra, influenciada pela circunstância fática em que o momento da análise é feito. A preponderância de uma em relação à outra dá-se no contexto em que os fatos são analisados. Há uma frase que explica muito bem essa variação de posicionamento entre a Filosofia e a Teologia ao longo da história: "a filosofia é a serva da teologia". O significado da frase é que a Filosofia é a ferramenta pela qual os teólogos podem obter uma melhor compreensão de suas crenças.

A religião no contexto histórico

Na evolução do pensamento filosófico ao longo da história, desde o período medieval até os nossos dias, sempre existiram reflexões críticas e profundas sobre questões fundamentais da existência, do conhecimento, da ética, da realidade e do significado das coisas. Essas reflexões fizeram-se e são feitas também em torno da religião, essa  incógnita que desafia o homem a compreendê-la.

A religiosidade é um comportamento social que pode ser entendido de várias formas, a depender do contexto cultural, filosófico ou pessoal. Em geral, a religião expressa confiança ou crença em algo que não pode ser provado de maneira empírica ou lógica. Ela transcende a razão e, muitas vezes, envolve uma certeza interna ou convicção que excede as evidências físicas ou racionais. Naquilo que chamamos de transumanismo.

O que é transumanismo?

O mundo conheceu várias correntes filosóficas que prepararam o terreno para o desenvolvimento do pensamento racionalista, científico e crítico. De forma resumida, nós temos o pensamento humanista que surgiu no contexto do Renascimento,  o pensamento  Pós-humanismo, uma corrente mais recente que no final do século XX e o Transumanismo, que emergiu no século XX e baseia-se no uso de tecnologias avançadas para transcender as limitações biológicas humanas.

A Inteligência Artificial posiciona-se no Transumanismo. O movimento do Transumanismo une a Tecnologia e Biologia para romper as limitações atuais do ser humano e expandir a sua capacidade. Ele defende a utilização de tecnologias avançadas para aprimorar as capacidades humanas. Trata-se de um movimento multidisciplinar, que estuda como a Tecnologia é capaz de fundir o corpo e a mente humana e permitir ao ser humano transcender diante das limitações atuais.

Os transumanistas buscam aprimorar as habilidades humanas, prolongar a expectativa de vida e moldar o caminho evolutivo para superar as restrições biológicas e aumentar as capacidades físicas e intelectuais, levar a uma nova era do potencial humano. O movimento defende a utilização de tecnologias avançadas para aprimorar as capacidades humanas, para explorar diversas possibilidades como a engenharia genética, a inteligência artificial, a nanotecnologia e muito mais. Embora muitas vezes desencadeia debates e considerações éticas, o Transumanismo oferece uma visão convincente de um mundo em que a  humanidade alcança novas fronteiras de existência.

A  Inteligência Artificial no cenário religioso

Para Tertuliano a razão humana era incapaz de compreender plenamente os mistérios que envolviam a religião e a pergunta que se faz é: a Inteligência Artificial é capaz de compreender esse mistério?

A propósito, a “Evangelische Kirche Deutschland” (Igreja Evangélica da Alemanha, EKD), num evento comemorativo realizou o primeiro culto conduzido pela Inteligência Artificial. O ato religioso teve sermão, salmos, orações e cânticos que foram produzidos pela própria Inteligência Artificial para o evento. A experiência foi assistida por centenas de pessoas. Muitas dessas pessoas não se sentiram confortáveis em acompanhar os atos do culto, que foi conduzido por quatro avatares (dois homens e duas mulheres) elaborados pela Inteligência Artificial para o evento.

O pensamento hodierno concebe, sem resistência à criação homem-máquina, o ciborgue. Pesquisadores da Universidade de Sheffield, na Inglaterra, publicaram em junho de 2023 um artigo científico em que afirmam: para que as máquinas inteligentes fiquem mais parecidas com seres humanos elas precisam de um corpo. Afinal de contas, a Inteligência Artificial precisa sentir e entender o mundo à sua volta, se o objetivo for tornar-se o mais humano possível. Para os robôs, realmente, realizar ações como tocar, sentir e ouvir como nós é necessário que eles tenham pelo menos um sistema neural tão poderoso como o biológico que nós temos. Estamos falando de um cérebro dotado de inúmeros departamentos que cuidam de coisas diferentes em uma configuração chamada de arquitetura, o que a Inteligência Artificial o que a Inteligência Artificial não usa.

Essa concepção é parte integrante do pensamento transumanista, que busca a perfectibilidade do ser humano. O autor francês, Bruno Latour, sugere uma mudança do conceito de sociedade como aquela composta apenas por humanos. Ele fala em substituição da ideia sociológica “do social”, pela ideia de “redes”, não mais formadas apenas por atores humanos, mas por diversas entidades que, por meio de redes agregativas, contribuem para a realização e o desfecho de uma ação, intervindo de várias maneiras: “um social mais complexo, composto por humanos e não humanos”.

Não há como negar que a Inteligência Artificial pode ser uma ferramenta muito útil nas questões de comunicação de massa, principalmente, por conta da ruptura da barreira da linguagem. Uma mensagem elaborada por ela pode atingir em frações de segundo milhares de pessoas em diferentes idiomas. Entretanto, ainda que haja todo um aperfeiçoamento robótico, há ceticismo em aceitar que uma máquina possa expressar o sentimento da alma.

Será que caminhamos para a aceitação de um proselitismo religioso digital?

Para a pesquisadora Anna Puzio, da Universidade de Twente (Países Baixos)

“é possível usar de forma positiva a inteligência artificial na religião, por exemplo, para ampliar o acesso a serviços religiosos, porém, ela observa que existem perigos no uso dessa tecnologia para fins nesse sentido, isto porque como a inteligência artificial está muito parecida com a inteligência humana, é fácil ser enganado por ela.”

A liberdade de expressão é um dos direitos fundamentais garantidos por diversas constituições ao redor do mundo, sendo considerado essencial para o funcionamento das democracias e a proteção dos direitos humanos. Esse direito envolve a liberdade de comunicar ideias, opiniões, crenças e informações sem interferências ou censura por parte do Estado. No entanto, o grau de proteção e as limitações a esse direito variam conforme a jurisdição de cada país, resultando em diferentes interpretações e abordagens legais.

A liberdade de expressão na concepção da inteligência artificial envolve uma série de questões complexas que afetam tanto os direitos humanos quanto às dinâmicas de controle e regulação da tecnologia. Embora a Inteligência Artificial não tenha “liberdade de expressão” no sentido humano, sua criação e uso implicam em desafios para a manutenção e proteção desse direito fundamental.

A comunicação de massa, especialmente na era da sociedade de dados, tem um impacto significativo sobre a liberdade individual de religião, tanto em termos positivos quanto negativos.

De tudo, tem-se que a comunicação de massa na sociedade de dados tem um impacto duplo sobre a liberdade de religião. Enquanto oferece oportunidades para uma maior exploração, expressão e conexão religiosa, também cria desafios significativos, incluindo a possibilidade de vigilância, controle de informações, e o aumento do preconceito religioso. A chave para mitigar esses impactos negativos está na promoção de direitos humanos, liberdade de expressão e garantias de proteção à diversidade religiosa em ambientes online e offline.

Da análise feita neste estudo, chega-se à conclusão de que é possível existir uma aproximação entre a religião e a Inteligência Artificial, desde que esta última se preste a servir à primeira como instrumento de comunicação para a propagação do objetivo religioso. Seja a Inteligência Artificial, um meio de comunicação de massa, sem a prerrogativa de ser autora da mensagem que por ela será divulgada, posto que ela só conhece a letra fria dos textos religiosos não sendo capaz de reproduzir os valores de moral e ética que deles provêm.

* Professor e Juiz de Direito

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Portal iG