Com peronismo no Congresso, radicalismo de Milei pode ficar para trás

Especialistas avaliam que novo presidente argentino já está baixando o tom e deve moderar o discurso para garantir a governabilidade

Foto: Reprodução/Instagram
Javier Milei terá de lidar com Congresso de esquerda

O presidente eleito argentino da extrema direita Javier Milei , que assume o comando do país no próximo dia 10 de dezembro, deve enfrentar forte resistência no Congresso Nacional, formado por um grande grupo de peronistas.

Tanto a Câmara dos Deputados quanto o Senado argentinos são compostos, em grande parte, por congressistas do Unión por la Patria, coalizão peronista do ministro da Economia e ex-candidato à presidência, Sergio Massa. 

Embora o partido de Milei, La Libertad Avanza, tenha alcançado muitas cadeiras no Congresso, o número ainda está longe de representar a maior parte das casas legislativas. Na Câmara, o número de deputados saltou de três para 38, de um total de 257. No Senado, o número aumentou de zero para sete, de um total de 72.

Mesmo contabilizando os congressistas do Juntos por el Cambio, coligação da ex-candidata à presidência Patricia Bullrich, que apoiou Milei no segundo turno, o futuro presidente ainda não tem maioria no Senado e ultrapassa a metade na Câmara por apenas dois deputados. Coligações menores, como a Tercera Vía e a Izquierda, também se opõem a Milei.

Foto: Dimítria Coutinho/Portal iG
Composição da Câmara dos Deputados eleita na Argentina


Foto: Dimítria Coutinho/Portal iG
Composição do Senado eleito na Argentina


"A governabilidade de Milei está muito em cheque, porque ele não tem uma maioria no Congresso, nem tradição política, nem vem de um partido forte ou grande. Então, tudo isso vai demandar que ele tenha muita capacidade de negociação e de fazer arranjos para conseguir fazer algumas aprovações dentro das suas propostas", analisa Regiane Bressan, professora de Relações Internacionais da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp).

Milei vai abaixar o tom?

Diante do cenário exposto, especialistas apontam que Milei só tem duas opções diante de si: baixar o tom e negociar com o Congresso peronista ou inflamar seu discurso radical e mirar no autoritarismo.

Desde o dia 19 de novembro, quando venceu as eleições, Milei vem dando sinais de que seguirá a primeira opção. Rodrigo Augusto Prando, professor e pesquisador do Centro de Ciências Sociais e Aplicadas da Universidade Presbiteriana Mackenzie, aponta alguns desses sinais, sobretudo relacionados à diplomacia:  dizer que o presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) será bem-vindo em sua posse após tecer críticas a ele durante a campanha;  enviar sua futura chanceler presencialmente a Brasília para oficializar o convite; e suavizar o discurso em relação à China,  agradecendo publicamente o presidente Xi Jinping por ter parabenizado sua vitória.

Regiane também observa uma mudança geral de discurso, com Milei deixando um pouco da radicalidade presente na campanha de lado. "Agora, ele vai colocando de forma explícita que todo aquele discurso era uma estratégia eleitoral, que chamava muito a atenção de eleitores insatisfeitos, revoltados com a situação econômica do país", comenta.

Além de depender do Congresso para aprovar suas pautas, Milei também deve mudar seu discurso por conta dos conselhos políticos que deve receber, apontam os especialistas. Para vencer o segundo turno das eleições, o ultradireitista contou com o apoio do ex-presidente Mauricio Macri e de Patricia Bullrich.

De um lado, é provável que ele considere os conselhos e a trajetória política de Macri. Do outro, terá de levar em consideração que parte do seu eleitorado veio de Bullrich e, portanto, não concorda completamente com suas pautas mais radicais.

"Dentro do Congresso, creio que ele vai buscar muito apoio da direita mais conservadora", analisa Regiane. "Eu acho muito mais saudável que o Milei se alie à direita conservadora para poder ter governabilidade e dar vazão a essas demandas de uma direita mais tradicional, que remete ao Macri e que está, de fato, sufocada, do que que ele rompa com as instituições democráticas e vá caminhando para o autoritarismo, o que é uma possibilidade que a gente não pode descartar", completa.

Além do Congresso

Para além dos deputados e senadores, o novo presidente argentino terá que lidar também com a oposição da sociedade civil. Milei venceu o pleito com pouco mais de 55% dos votos, o que significa que quase metade do país se opõe às suas pautas, que envolvem a dolarização da economia e o afastamento de parceiros internacionais, como China e Brasil - nenhuma dessas pautas devem ser concretizadas na prática, opinam os especialistas.

Traçando um paralelo com o Brasil, Milei venceu as eleições em condições similares às que Jair Bolsonaro venceu em 2018. Com a diferença da crise econômica argentina sem precedentes, ambos os países viviam momentos de forte insatisfação de parte da população e foram atingidos pela onda conservadora global, que passou antes pelo Reino Unido, com o Brexit, e pelos Estados Unidos, com a eleição de Donald Trump. Assim como Bolsonaro, Milei também soube usar bem as redes sociais durante sua campanha.

Essa similaridade significa que, assim como Bolsonaro, Milei tem uma base radicalizada e calorosa, mas também tem forte oposição. Na Argentina, o principal opositor do novo presidente é o peronismo, ideologia política surgida com o estadista Juan Domingo Perón e ligada a pautas sociais e sindicais. Incomparável com qualquer outro movimento que exista no Brasil, o peronismo foi, ao longo dos anos, se associando também à cultura argentina, sendo consolidando com forte devoção. "O peronismo é algo muito mais forte que o próprio petismo no Brasil", resume Regiane.

Na visão de Rodrigo, enquanto Bolsonaro "nunca desceu do palanque", Milei deve baixar o tom. Isso porque se Milei partir para a radicalização em seu governo, sem conversar com os congressistas e outros atores políticos, o resultado pode ser de muitas manifestações e greves.

O professor compara a situação com a vivida atualmente em São Paulo, com o governador Tarcísio de Freitas querendo a todo custo cumprir suas promessas de campanha de privatizações - e, para isso, desconsiderando a  insatisfação popular.

"Essa ideia de 'eu sou presidente, eu vou governar', que o Milei tem, o Bolsonaro tinha, o Tarcísio tem aqui em São Paulo, é errada. É preciso dialogar com a sociedade e com os outros poderes. Ele é presidente, não imperador", afirma Rodrigo.

Regiane, porém, não vê essa possibilidade de aumento da tensão nas ruas. Para ela, "é muito mais plausível fazer manifestações em governos de esquerda", já que um possível governo autoritário de Milei poderia sufocar protestos sociais.

"A América Latina é palco de governos autoritários, sejam eles de direita ou de esquerda, e preocupa muito quando o Milei faz alguns acenos para esse autoritarismo", afirma a professora. "Pela democracia ser incipiente na América Latina, há um imaginário de que a democracia acontece a cada quatro anos no dia de votar. Depois disso, não há controle social ou acompanhamento do que os candidatos eleitos estão realmente fazendo", completa.

Independentemente da forma como Milei conduzir seu governo, Regiane acredita que os próximos anos serão de renovação da esquerda, assim como acontece no Brasil. "Essa onda conservadora mundial chegou na Argentina surpreendendo eles mesmos, foi quase que um golpe para as elites políticas da Argentina. E agora eles começam a se movimentar, a reagir. A esquerda vai ter que se renovar", analisa.