A Rússia admitiu explicitamente, pela primeira vez, que um de seus objetivos com a invasão na Ucrânia é tirar o presidente Volodymyr Zelensky do poder em Kiev. A afirmação foi feita no domingo pelo chanceler do Kremlin, Sergei Lavrov, durante uma cúpula da Liga Árabe, em Cairo, exatos cinco meses após a guerra eclodir, em 24 de fevereiro.
"Russos e ucranianos vão continuar a viver juntos, e nós com certeza vamos ajudar o povo ucraniano a se livrar deste regime que é absolutamente antipopular e anti-histórico", disse Lavrov, no Egito, dizendo ainda que Moscou irá ajudar o país vizinho a se "livrar do fardo deste regime absolutamente inaceitável".
Desde o início da guerra, a Rússia é propositalmente ambígua sobre quais são os objetivos de sua campanha militar, alegando, inicialmente, buscar a “desmilitarização” e “desnazificação” da Ucrânia — este último item era em geral entendido como uma troca de poder em Kiev. O próprio presidente Vladimir Putin, por exemplo, chegou a se referir à alta cúpula de Kiev como uma "gangue de viciados em drogas e neonazistas".
Moscou, no entanto, ainda não havia defendido abertamente a remoção de Zelensky, mesmo que suas ações também indicassem que este era o objetivo. O plano inicial de Putin, no início da guerra, foi cercar grandes cidades como Kharkiv e a própria capital, Kiev — tentando assim derrubar o governo ucraniano. A resistência, contudo, foi grande, e Moscou foi forçada a recalcular sua estratégia.
De março até o início deste mês, os combates se concentraram no Leste da Ucrânia, onde forças separatistas pró-Moscou já ocupavam parte do território desde 2014, esforços que permitiram ao Kremlin tomar todo o território de Luhansk. Se conseguirem tomar também o vizinho Donestk, terão o controle de toda a bacia do Donbass.
As declarações de Lavrov desta terça coincidem com um momento em que os combates têm três frentes: a Rússia tenta consolidar e expandir seus avanços enquanto busca conter a crescente resistência ucraniana, reforçada por armas ocidentais. Segundo o chanceler, Moscou estava pronta para negociar um cessar-fogo em março, culpando Kiev pelo fracasso nas negociações, suspensas em abril, e culpando o Ocidente por incitar os ucranianos:
"O Ocidente insiste que a Ucrânia não deve começar negociações até que a Rússia seja derrotada no campo de batalha", disse Lavrov, que acusou os "aliados ocidentais" de promoverem propaganda para garantir que a "Ucrânia seja a inimiga eterna da Rússia".
A visita de Lavrov ao Cairo, por sua vez, foi mais uma demonstração de Moscou de que o país não está isolado diplomaticamente, como querem nações como os EUA e a União Europeia. Na semana passada, o presidente Vladimir Putin esteve em Teerã, onde se encontrou com lideranças locais, como o presidente Ebrahim Raisi e o líder supremo, aiatolá Ali Khamenei, e com o presidente da Turquia, Recep Tayyip Erdogan.
A viagem do chanceler, que também inclui Uganda, Etiópia e Congo, tem essencialmente o objetivo de atrair as nações africanas do lado russo. Em um artigo publicado em quatro jornais africanos, ele elogiou o que descreveu como um "caminho independente" adotado pelos países africanos em rejeitar aderir às sanções ocidentais contra a Rússia e as "indisfarçadas tentativas dos EUA e de seus satélites europeus de ganhar vantagem e impor uma ordem mundial unipolar”.
No Cairo, Lavrov encontrou uma plateia afável: ali, nenhum governo condenou publicamente a guerra na Ucrânia, e eles evitam fazer críticas abertas a Moscou, apontando para os longevos laços políticos e, especialmente, econômicos: no caso dos grãos, a Rússia é o principal fornecedor para boa parte das nações árabes.
Embasamento para alegações
A insistência do Kremlin de que Kiev é liderada por neonazistas — apesar do próprio Zelensky ser judeu — tem origens históricas, datando da invasão da Ucrânia por forças alemãs durante a Segunda Guerra Mundial. À época, alguns nacionalistas apoiaram as forças de Adolf Hitler, fosse por simpatia aos ideias ou para fazer oposição à União Soviética, após a política stalinista de coletivização agrícola que matou 3 milhões de pessoas ter duros impactos para os ucranianos na década anterior.
Esse alinhamento às forças de ocupação alemãs é citado por aliados de Putin como uma prova de que o nazismo "reside" na alma ucraniana. Com o desmantelamento da União Soviética, em 1991, e o aumento do sentimento nacionalista, alguns grupos neonazistas ressurgiram, inclusive em Kiev, onde ganharam algum destaque após a revolta popular iniciada em 2013 e que derrubou o governo pró-Moscou de Viktor Yanukovich, no ano seguinte. Desde então, atuam na luta contra separatistas russos.
Entre no canal do Último Segundo no Telegram e veja as principais notícias do dia no Brasil e no Mundo. Siga também o perfil geral do Portal iG.