Censo argentino: negros celebram pergunta sobre identidade étnica

Pesquisadores e advogado destacam que mudança na pesquisa nacional auxilia no combate à invisibilização da população negra na Argentina

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Pela primeira vez censo argentino faz pergunta sobre identidade étnica para toda a população


O governo da Argentina realizou, entre os dias 18 e 19 de maio, o censo nacional. A coleta de dados da população acontece a cada dez anos, mas a pesquisa foi realizada pela última vez em 2010, em razão da pandemia de covid-19.

Foi decretado um feriado para que pesquisadores pudessem colher as informações dos cidadãos, e muitos comércios sequer abriram na data. Resultados iniciais apontaram que a população argentina cresceu em 7,2 milhões de pessoas entre 2010 e 2022, com o país registrando agora 47 milhões de habitantes.

Mas, para além da volta desta pesquisa de âmbito nacional, a população negra do país celebrou uma mudança adotada no censo deste ano: pela primeira vez na história os argentinos foram perguntados sobre a sua identidade étnico-racial.

O censo realizado em 2010 fez essa pergunta apenas 10% das pessoas, como uma espécie de teste. Na ocasião, os dados mostraram que cerca de 150 mil negros viviam no país.

De acordo com Ali Delgado, advogado, docente e ativista argentino, esta alteração na pesquisa é de suma importância para mostrar que há uma grande parcela da população local que se reconhece como negra, favorecendo cada vez mais a articulação dos movimentos que agem em prol da causa racial na Argentina.

“Tem sido muito importante no sentido de colocar na agenda que a Argentina tem uma população afrodescendente muito maior do que o que informou o censo anterior de 2010”, destacou. “Mas ainda falta um longo caminho de autorreconhecimento e reconhecimento dos direitos dos negros por parte do Estado.”

Carlos Álvarez Nazareno, ex-diretor nacional de Equidade Étnico Racial, Migrantes e Refugiados, e agora coordenador nacional do programa Afrodescendência e Direitos Humanos, na Secretaría de Direitos Humanos do governo argentino, ressalta o orgulho que muitas pessoas sentiram em responder pela primeira vez em uma pesquisa oficial que são afrodescendentes.

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Nazareno é um dos primeiros negros a ocupar um cargo público no governo argentino


“A maioria dos afroargentinos ficaram muito orgulhosos de responderem a essa pergunta do censo, como uma questão de reivindicação da história, da ancestralidade deles”, enfatizou o sociólogo.

“Essa pergunta começa a romper diretamente com a estrutura de que na Argentina todos são brancos.”

"Não há negros na Argentina" 

Assim como afirmou Álvarez, o mais recente recenseamento tem o importante objetivo de destruir a ideia de que não existem negros na Argentina. A invisibilização no censo e a negação social são dois fatores que alimentam essa ideia de um país exclusivamente branco.

“Se essas pessoas não estão no censo, elas não existem para o governo e não vão ser pensadas e levadas em consideração se não estão dentro das estatísticas nacionais. Esse censo quebra com o padrão de invisibilização”, destaca Denise Braz.

Denise é brasileira, natural de Minas Gerais, e morou na Argentina durante sete anos, período em que concluiu o seu mestrado em Antropologia Social e Política na Faculdade de Filosofia e Letras da Universidade de Buenos Aires. 

Dedicada a entender o porquê dos discursos hegemônicos fantasiosos e seus mitos mentirosos que insistem em narrar a ausência, a estrangeirização e invisibilização de afro argentinos no país, especialmente em Buenos Aires, a pesquisadora tornou-se mestre após apresentar uma tese entitulada “Os Movimentos Sociais Afrodescendentes da Cidade de Buenos Aires: Práticas e Reivindicações".

“A narrativa branca europeia que tenta colocar Buenos Aires como a capital da Europa dentro da América Latina está sendo destruída, mas ainda existem pessoas que querem sustentá-la. O movimento negro vem combatendo essa ideia há muitos e muitos anos”, ressalta.

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Denise morou na Argentina por 7 anos e concluiu o mestrado no país


Delgado também aponta a para a importância do ativismo dos negros no país no processo de rompimento de uma Argentina 100% embranquecida. Ele destaca que vem sendo feito um trabalho de formiga por parte da comunidade em diversos setores, principalmente na educação e nas redes sociais.

Nazareno, por sua vez, destaca que alguns órgãos estão desenvolvendo campanhas para maior reconehcimento histórico dos negros, apesar de entender que muitas autoridades ainda não lidem com o tema.

“O Estado argentino vem tentando fazer algumas políticas para derrubar esse preconceito da Argentina branca. Alguns órgão públicos estão criando ações de visibilização e reconhecimento da presença histórica da população afroargentina, além de visibilizar a diáspora migratória no país.”

Demanda mais urgente dos negros na Argentina

Com os movimentos negros locais conquistando cada vez mais espaço para colocar em pauta os temas que julgam ser mais importantes, a criação de políticas públicas com ações afirmativas para a população negra se apresenta como um dos assuntos mais urgentes na atualidade. 

“A gente vem trabalhando com três premissas: reconhecimento, justiça e desenvolvimento. Precisamos quebrar as desigualdades e criar maiores processos de inclusão, integração e desenvolvimento para essa parcela da população”, destaca Carlos Nazareno.

Ali Delgado joga luz sobre o tema do trabalho. De acordo com o advogado, boa parte da comunidade negra ainda precisa se sujeitar a vagas precarizadas no país. 

“Nossa comunidade sofre muito com a insegurança nos empregos. Na Argentina ainda não se discute raça nos termos do trabalho. Para mim é muito importante que haja uma política focada em torno da recuperação do trabalho para a nossa comunidade, trabalhos dignos, que permitam às pessoas desenvolverem seus planos de vida.”

Políticas focadas na educação também se mostram urgentes, afirma Denise. Ela observa que, mesmo reconhecendo a importância de acadêmicos brancos na produção de materiais para essa área, são produzidos pouquíssimos conteúdos relacionados aos negros argentinos nas universidades, e que isso se dá pela baixa presença de pessoas negras nas faculdades do país. 

“Na Argentina existem acadêmicos negros, mas é uma minoria, porque não tem políticas públicas para que essas pessoas consigam ingressar na academia. Eu, por exemplo, fui uma das primeiras pessoas negras a concluir um mestrado por lá”, afirma a pesquisadora brasileira.

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Ali criou a primeira disciplina 100% negra em uma universidade argentina


Seguindo o mesmo objetivo de transformar a ideia de uma Argentina exclusivamente branca por meio da educação, Delgado deu um passo muito importante junto a Patrícia Gomes, também advogada negra. Eles criaram a disciplina de “Direitos das comunidades negras na Argentina em uma perspectiva afro”, primeira matéria 100% negra na Argentina, na faculdade de Direito da Universidade de Buenos Aires.

Maior Abertura do governo argentino

Os três entrevistados reconhecem que, como produto das ações que estão sendo realizadas pelos divresos movimentos negros locais, o governo da Argentina vem se mostrando mais aberto para debater os temas de cunho racial, como a identidade dos afroargentinos, a interculturalidade e o reconhecimento de personalidades históricas. 

Exemplo disso foi o anúncio recente de que María Remedios del Valle, considerada a figura negra mais importante da história do país, vai estampar a nota de 500 pesos. Del Valle é conhecida como a “Mãe da Pátria” na Argentina por conta da sua importância nas batalhas da independência no país. Ela teve um grande papel como estrategista e também no cuidado dos feridos nos combates.


Ali Delgado e Carlos Nazareno, contudo, afirmam que ainda falta muito para que as iniciativas do governo comecem a, de fato, impactar a maior parte das pessoas negras do país. Além disso, destacam que falta ser tratada de maneira mais aberta e transparente a questão da violência sofrida pela população negra.

“A justiça é altamente racista e as forças de segurança matam e perseguem o nosso povo apenas por causa da pele. Assim como nos Estados Unidos e no Brasil, aqui nós também vemos muitos assassinatos e execuções motivados pelo racismo”, enfatiza o sociólogo.

Denise, por exemplo, fala sobre o caso de Massar Ba, líder da comunidade senegalesa e de imigrantes africanos na Argentina que foi brutalmente assassinado em março de 2016. Até hoje não houve a conclusão sobre a morte dele. 

“Foi uma história muito parecida com a da Marielle, porque Massar Ba era uma liderança muito potente e que chegaria a estágios muito altos na política, assim como a brasileira. Eles tentam calar essas lideranças, mas eles não conseguem porque, depois dele, vieram muito mais ativistas”, afirmou.

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