Entenda como a água pode virar uma arma de guerra em conflitos

Tática histórica é usada pelas forças russas para forçar rendição na cidade portuária de Mariupol, afirmam autoridades da União Europeia

Equipes da CICV e da Cruz Vermelha ucraniana realizam uma distribuição de água em Olenovka
Foto: Reprodução/Cruz Vermelha - 09.03.2022
Equipes da CICV e da Cruz Vermelha ucraniana realizam uma distribuição de água em Olenovka

No Dia Mundial da Água, em 22 de março, o chefe da diplomacia da União Europeia (UE), Josep Borrell, e o comissário europeu para Assuntos Marítimos e de Pesca, Virginijus Sinkevičius, acusaram a Rússia de usar a água como arma de guerra na Ucrânia.

Em comunicado, Borrell e Sinkevičius afirmaram que, na cidade portuária de Mariupol, no Leste do país, as forças russas cortaram deliberadamente o acesso da população à água potável, "usando a ameaça de desidratação para forçar a rendição da cidade e negando acesso às necessidades mais básicas".

O presidente Volodymyr Zelensky afirma que morreram dezenas de milhares de civis no cerco russo , que se prolonga há quase dois meses na cidade.

A acusação feita pela UE contra a Rússia não se refere a uma tática de guerra limitada ao conflito da Ucrânia. Seja por meio de cercos militares, interrupção do abastecimento ou envenenamento, a restrição ao acesso à água é uma das estratégias mais usadas em campos de batalha como uma forma de forçar a rendição do inimigo.

Em guerras como a da Ucrânia, a falta de acesso à água também pode resultar da destruição da infraestrutura das cidades sob bombardeio, de acordo com o coordenador do curso de Relações Internacionais da Universidade de Brasília (UnB), Antônio Jorge Ramalho da Rocha.

"A restrição do acesso à água pode acontecer através de ataques à cadeia de fornecimento, destruição de represas ou até mesmo pela contaminação de reservatórios. Só que, em alguns casos, esse bloqueio é apenas um dano colateral dos ataques armados, sem a intenção deliberada do agressor [de interromper o acesso à água]"  explica.

O abastecimento hídrico faz parte do que os especialistas chamam de “infraestrutura crítica”: todos os serviços e estruturas cuja destruição pode ter como consequência danos pesados à população local. Também entram nessa categoria aeroportos, estradas, pontes, usinas de energia e serviços de comunicação, por exemplo.

Pedro Mendes Martins, mestre em Ciências Militares pela Escola de Comando e Estado-Maior do Exército (Eceme), explica que a estratégia por trás do ataque a infraestruturas críticas é enfraquecer o inimigo para impôr uma negociação ou ao menos diminuir sua resistência.

"Afinal, pessoas com fome e com sede não costumam ser bons soldados. Além disso, essa tática pode ser usada para afetar a moral das forças de defesa"  diz Martins.

Restrição do acesso à água é um crime de guerra?

Por definição, os crimes de guerra são violações às leis humanitárias, que foram criadas para limitar a violência durante conflitos armados. Esse conjunto de regras está fundamentado principalmente nas quatro Convenções de Genebra (a primeira aconteceu em 1863 e a última, em 1949), além de seus protocolos adicionais, que oferecem bases para a proteção de civis e a responsabilização dos Estados.

De acordo com Priscila Caneparo, doutora em Direito Internacional e professora da Universidade Católica de Brasília e da Ambra University, o uso da água para forçar a rendição pode ser considerado um crime de guerra.

"Está previsto no estatuto do Tribunal Penal Internacional (TPI) que infringir sofrimento forçado, com vistas à inanição e à falta de acesso a bens básicos para a população civil, é sim um crime de guerra" explica.

A violação de leis humanitárias pode ser julgada pela Corte Internacional de Justiça (CIJ), quando um país é acusado, e pelo TPI, se um indivíduo for denunciado.

A jurisdição do TPI, entretanto, é restrita a crimes cometidos em território de países que reconheçam o Estatuto de Roma ou por cidadãos de um país signatário. A Rússia e a Ucrânia não fazem parte do estatuto, mas Kiev aceitou, em 2013, a jurisdição do tribunal sobre crimes cometidos em seu território.

Em quais conflitos essa tática foi usada?

Segundo o projeto “Water Conflict Chronology”, coletânea que lista todos os conflitos da história envolvendo água, os usos mais recentes dessa substância como arma de guerra aconteceram durante a Guerra Civil do Iêmen, e nos conflitos na Somália e em Mali.

Em 3 de janeiro desde ano, militantes do ISWAP (Grande Saara) atacaram as aldeias de Labodji, Doreye e Oussadia, em Gao, no Mali. Na ocasião, além de quatro pessoas serem mortas e casas serem queimadas, um tanque de água foi destruído.

Dois dias antes, na Somália, militantes do grupo terrorista Al Shabaab detonaram um explosivo por controle remoto para atingir um caminhão-tanque etíope perto da vila de Feerfeer, matand dez soldados.

De acordo com o site do projeto, o uso da água como tática militar remonta ao ano de 2.400 a.C., quando, na antiga Suméria, o rei de Lagash desviou o curso de um rio para deixar a cidade de Umma sem acesso à água.

O professor do Instituto de Relações Internacionais da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC - Rio), Márcio Scalercio, lembra também que as forças aéreas aliadas, durante a Segunda Guerra Mundial, organizaram operações para destruir represas na Alemanha.

"Na época, eles desenvolveram uma bomba que, quando lançada, quicava até a parede de contenção da represa, explodindo tudo. Ela causava inundações e interrompia o fornecimento de energia elétrica. Os americanos bombardearam represas no Vietnã com o mesmo propósito"  conta.

Outro caso recente foi na Guerra na Síria, onde cidades inteiras foram sitiadas pelo regime de Bashar al-Assad.

Em 2017, 4 milhões de pessoas ficaram sem água na capital, Damasco. Na ocasião, a Autoridade Hídrica de Damasco cortou o fornecimento dizendo que a água havia sido contaminada com diesel pelos opositores. Estes, por sua vez, negaram a acusação, dizendo que um bombardeio do governo havia danificado dutos que abasteciam 70% da região.

Água em disputa no mundo?

No futuro, as mudanças climáticas e o uso não sustentável da água podem se tornar potenciais ameaças à estabilidade política internacional ao agravar a escassez hídrica, sobretudo nas regiões desérticas ou semidesérticas, como o Oriente Médio ou o Norte da África.

"Dois exemplos claros são o conflito entre Egito e Etiópia pelas águas do Rio Nilo e a disputa entre China e Índia sobre o controle de um afluente do Rio Indo, localizado no Vale de Galwan. A junção de crescimento econômico com alterações na oferta hídrica, por causa das mudanças climáticas, cria um cenário de potenciais conflitos no mundo todo. É o caso de regiões como o Sul da Ásia e partes do Oriente Médio" diz Martins, do Eceme.

Rocha, da UnB, aponta como outro motivo de preocupação o manejo não sustentável dos recursos hídricos.

"A necessidade de produzir alimentos por sistemas de irrigação está acelerando a escassez hídrica em boa parte da Ásia, sobretudo na China" afirma o professor.

Segundo ele, enquanto a demanda por água fragiliza países carentes de recursos hídricos, nações da América do Sul, onde estão 23% das reservas de água doce no mundo, poderiam estar em vantagem se fizessem um uso consciente desses recursos.

"O  problema é que a ausência de políticas razoáveis de saneamento e o estímulo ao uso não sustentável de recursos hídricos ameaçam as reservas hídricas do subcontinente" declara.

Mas, apesar de um cenário que parece pessimista, Martins aponta que o risco de conflitos pela disputa de água pode ser bem reduzido pelo avanço tecnológico:

"As novas tecnologias de dessalinização avançam rapidamente, criando alternativas para atender às necessidades humanas" diz.


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