De manual para dirigir tanques a míssil: a guerra pelo olhar do TikTok

Rede social foi tomada por imagens da guerra na Ucrânia; especialista explica que cada vez mais plataformas serão principal meio de acesso às informações

Guerra na Ucrânia
Foto: Reprodução/TikTok
Guerra na Ucrânia

Imagens mostram helicópteros russos se aproximando de Kiev, capital da Ucrânia. Segundos depois, duas das aeronaves explodem e um homem comemora em ucraniano: “sim, abatemos duas!”. O vídeo curto, com menos de meio minuto, é só mais um dos milhares que estão sendo compartilhados no TikTok da ofensiva da Rússia contra o país do Leste Europeu.

Assim como foi visto na Primavera Árabe, no início dos anos 2010, e dos protestos no Brasil em 2013, cada vez mais as redes sociais têm sido usadas para compartilhar imagens dos momentos históricos e aumentando seu alcance a outras partes do mundo. Na crise da Ucrânia, alvo de ataques russos desde a semana passada, não tem sido muito diferente: a única coisa é que, agora, o principal meio de divulgação das imagens da guerra é o TikTok, plataforma de vídeos curtos coisa é que, agora, o principal meio de divulgação das imagens da guerra é o TikTok, plataforma de vídeos curtos lançada em 2016.

Segundo Christian Perrone, pesquisador sênior do Instituto e Tecnologia e Sociedade (ITS), a guerra na Ucrânia é um dos primeiros eventos em que a principal forma de acesso à informação é por meio de vídeos curtos. E o TikTok, mais do que outras redes sociais, facilita o compartilhamento desse tipo de contéudo por ser voltado exclusivamente para gravações rápidos, e pela plataformar já ser sua própria ferramenta de edição.

— É a máxima de que uma imagem vale mais do que mil palavras. Agora, nós temos vídeos que nos mostram o que está acontecendo. Se a gente for olhar o que aconteceu nos últimos dez anos, esse tipo de vídeo ainda não era a principal forma de contar o que está acontecendo. Na Primavera Árabe, por exemplo, embora tenhamos usado muito o Twitter e o Facebook, ainda tinham muitos textos e links sendo compartilhados — explica Perrone — Agora, com esses vídeos curtos, a capacidade de alcance é muito maior.

O vídeo dos helicópteros sendo abatidos, por exemplo, tiveram mais de 3,5 mil curtidas em menos de 18 horas desde que foi compartilhado no TikTok. Pela plataforma também permitir que as imagens sejam baixadas e publicadas em outras redes ou enviadas por aplicativos de mensagem, não é possível mensurar quantas vezes o vídeo foi compartilhado.

Para divulgar o que está acontecendo, usuários da plataforma tem usado hashtags como #Ukraine, #UkraineCrisis (crise na Ucrânia) e #Invasion (invasão) — na maioria das vezes, são escritos em inglês, para ampliar o alcance, mas os tópicos também aparecem em ucraniano. Segundo dados do TikTok obtidos pela revista american Wired, entre 20 e 28 de fevereiro, semana em que a Rússia começou a invasão, vídeos publicados com #Ukraine tiveram um salto de visualizações de 6,4 bilhões para 17,1 bilhões — isto é, 928 mil visualizações por minuto.

Visto mais de 10 milhões de vezes, um dos vídeos virais da crise da Ucrânia é de uma jovem que ensina como ligar e dirigir um tanque. A publicação da mecânica Nastya Tuman foi feita há apenas três dias e já teve quase um milhão de curtidas. Na gravação, ela entra em um tanque abandonado e mostra passo a passo de como colocá-lo para funcionar.

“Se você encontrar um veículo blindado abandonado — aprenda um truque de vida sobre como ligá-lo”:

Em outros vídeos, Tuman mostra detalhes de veículos blindados e seus motores.

Outra influenciadora ucraniada, Elena Filonova, trocou as postagens que fazia mostrando seu estilo de vida, malhando e seguindo trends do TikTok para mostrar as consequências da guerra em seu país. Em um dos vídeos que publicou, ela aparece apontado para um pedaço de míssil perto de sua casa, em Kiev. Em outro, ela mostra o momento em que uma torre de TV é atingida na capital ucraniana.

“Aquele momento em que você não se importa com sua aparência, você só pensa no fim da Guerra. Minha cabeça dói”, desabafa Filonova em uma de suas publicações mais recentes.

O soldado Andriy Kurilenko, que antes postava sobre seus treinos de MMA, agora compartilha o cotidiano na linha de frente da batalha. Uma de suas postagens mais recentes mostra um pouco da comida que está sendo doada às tropas ucranianas por seus compatriotas.

— Hoje vamos apoiar nossos irmãos militares com comida e doces, obrigado a todos que estão ajudando — diz Kurilenko, em vídeo publicado nesta quarta-feira.

Christian Perrone explica que o compartilhamento desse tipo de conteúdo também é facilitado pela forma em que ele é consumido, através do feed da rede social. Os internautas passam a ter acesso a essas imagens enquanto usam as plataformas, mesmo que seja para ver outras coisas.

— Você desce sua timeline começa a ver o vídeo de um gatinho, de pessoas dançando, e aí aparecem cenas da guerra. É diferente de um jornal, por exemplo, em que as informações são organizadas em blocos. No feed, não, elas vão aparecendo para você sem distinção — diz Perrone, que explica que quando mais conteúdos do tipo o usuário consome, mais ele aparece na timeline.

No contexto da crise na Ucrânia, perfis que produziam conteúdos diversos, como o da influenciadora Elena Filonova, passaram a tratar da guerra no país. É o caso também do gato ucraniano Stepan, cujo perfil com mais de seguidores milhão postava apenas fotos fofas do felino. Agora, faz também menção às ofensivas russas.

“A Ucrânia não quer guerra. Stepan está lançando um flash mob. Poste uma foto e use as hashtags #PareAGuerra e #ParePutin. O mundo precisa do nosso apoio”, diz a publicação mais recente do gatinho, feita há dois dias.

Perrone alerta que a facilidade em que esse tipo de conteúdo é postado pode criar um criar um desgaste emocional nos usuários das redes sociais. Isso torna com que sejam mais suscetíveis a acreditarem em informações falsas e fake news, que também são compartilhadas junto com as imagens cotidianos do front.

— Se por um lado essas imagens fazem com que as pessoas fiquem mais conscientes do que está acontecendo, por outro você fica completamente imerso nelas e passa a ter uma dificuldade de se afastar desse tipo de conteúdo. Pode haver um custo emocional — explica o especialista, que completa: — A desinformação, que também é muito compartilhada nesses casos, com esse custo emocional pode levar as pessoas a agirem de maneira equivocada. Pode gerar uma sensação de “call for action”, indo desde doar para pessoas que se aproveitam da crise até a formular políticas públicas.

Assim como foram compartilhadas cenas reais do que acontece na Ucrânia, desde o início da crise, também foram divulgadas imagens fora de contexto, que aconteceram em outros conflitos, ou até mesmo de jogos afirmando que eram verídicas. Um vídeo de soldados russos saltando de paraquedas, por exemplo, foi usado para mostrar tropas da Rússia chegando no país. As imagens, no entanto, eram de 2015.

Perrone explica que, com a ampla divulgação desses conteúdos, há também o surgimento de campanhas de desinformação que podem ter fins políticos ou econômicos.

— No contexto russo, por exemplo, essas imagens podem justificar uma visão da guerra. Compartilhando desinformação, de alguma forma você pode estar ajudando a endossar uma justificativa política — alerta.

Desde o ano passado o TikTok conta com uma opção para os usuários denunciarem conteúdos falsos na plataforma. Caso seja confirmado que o vídeo é mentiroso ou uma desinformação, ele pode ser retirado da rede. A plataforma também coloca etiquetas de "conteúdo não verificado" quando sua veracidade não puder ser comprovada. No entanto, devido ao alto volume de publicações feitas diariamente, nem todas conseguem ser checadas.

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