Com coquetéis-molotovs, civis resistem à invasão russa em Kiev
No Centro, quase não há soldados nem equipamentos militares, e é a população que se prepara para entrada do inimigo
À primeira vista, parecia uma dessas enfadonhas reuniões de condomínio. Numa sala grande, com cadeiras acolchoadas, homens de meia idade, alguns jovens de rostos púberes e comportadas senhoras conversavam de forma tranquila, quase jovial. Ao fundo, um grupo comia arroz, batatas cozidas e o que parecia ser um ensopado de carne. A cena pedestre que lembrava mais uma dessas tardes modorrentas de sábado só era rompida por pequenos grupos armados com AKs 47 cruzando o salão em direção ao subsolo desse edifício residencial no centro de Kiev.
Uma porta de aço dava acesso a uma longa escada de concreto mal iluminada por lâmpadas incandescentes. Após um primeiro lance de escadas, um grupo de homens já de cabelos brancos conversava animadamente ao lado de uma pilha de fuzis e caixas de munição. Enquanto falavam, iam carregando os pentes com balas de calibre 7.62 para abastecer os rifles que seriam levados em algumas horas para as posições de defesa na periferia de Kiev
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— Hoje acho que matei pelo menos dois russos, conseguimos segurar eles lá perto do zoológico, logo eu, que sou um sujeito que sempre gostei de vida boa, nunca me envolvi em confusão, trabalhei a vida como editor de livros — disse o homem de cabelos grisalhos, um pouco acima do peso, que garantia chamar-se Richard e ter 42 anos de idade. — Todo mundo aqui é como eu, gente normal, como você, que não vai permitir que os invasores controlem nossa terra — disse, reclamando estar cansado de ter dormido poucas horas na última noite de batalhas.
Richard conta que é o diretor desse centro de recrutamento de combatentes civis do Svoboda, um partido político ultranacionalista ucraniano, acusado muitas vezes de aceitar entre seus membros integrantes de grupos neo-nazistas. — Isso é uma besteira, não temos problemas com ninguém, nem com os russos, só temos como lema defender a Ucrânia acima de tudo — contou, ao lado de seu rifle equipado com uma lente de visão noturna. — Esse é para as caçadas noturnas.
Nos últimos dias, o governo ucraniano fez uma convocação aberta a toda a população para engajar-se na luta contra os soldados russos que se aproximam de Kiev. Em um hipódromo a alguns quilômetros do centro da cidade, caminhões carregados com AKs-47 chegavam a todo momento. Os fuzis criados na vizinha Rússia eram distribuídos a qualquer um que se mostrasse disposto a lutar. Fuzis novos, ainda cheirando ao óleo usado na lubrificação do armamento recém-saído das caixas. Junto com cada rifle, uma caixa de munições.
Kiev agora está repleta de civis armados, muitos deles sem nenhuma experiência militar. Na tarde de sábado em Dnipro, uma cidade ao leste de Kiev, um grupo baleou dois jornalistas dinamarqueses acreditando que eles eram espiões russos por não responderem ao pedido de uma contra-senha em ucraniano.
Um grupo de jornalistas do qual eu fazia parte foi convidado a sair do local de forma cortês por um homem que se dizia oficial da Inteligência. Ele afirmava que muitos dos homens que estavam ali recebendo suas armas acreditavam que em nosso grupo espiões russos poderiam estar infiltrados.
Enquanto homens se armam, mulheres e jovens universitários se concentram em fábricas improvisadas de coquetel molotov no centro da cidade.
Em um edifício a pouco menos de um quilômetro da Praça da Independência, uma dúzia de jovens meninas, senhoras e profissionais recém-saídos da universidade se concentram na produção da mistura de óleo diesel e gasolina que veio a ganhar o nome do ministro das Relações Exteriores da União Soviética na Segunda Guerra Mundial, Vyacheslav Mikhaylovich Molotov. Estão aqui nos últimos três dias, produzindo armas rústicas, com as quais eles parecem acreditar que poderão frear os tanques russos.
Olga tem só 29 anos e havia acabado de conquistar um emprego como gerente de projetos em uma empresa de comunicação corporativa.
— Agora veja como estou, recolhendo as garrafas de vinho quetinha em casa, as garrafas de vodca de uma festa que tivemos na semana passada para fabricar coquetéis-molotovs — disse ela, gargalhando, enquanto colocava pedaços de isopor dentro das garrafas que logo seriam abastecidas como óleo e gasolina.
— Estamos vivendo o que nossos avós e bisavós viveram há 80 anos quando os alemães invadiram Kiev, a história está se repetindo, uma história que todos nós aqui imaginávamos ter ficado no passado — contou Olga, num inglês quase sem o sotaque tradicional e forte dos ucranianos.
Junto com ela está uma mulher de meia idade, que não quer dizer seu nome, mas não se importa em ser fotografada. Elas fazem parte da segunda estação de uma linha de montagem organizada. São responsáveis por esfarelar pedaços de isopor retirados de embalagens de produtos eletrônicos e colocar os grãos dentro das garrafas.
— Isopor ajuda a ampliar o fogo, manter ele por mais tempo — contou um rapaz jovem, que diz se chamar Yoroslav. — Sou químico, por isso sei essas coisas — disse ele, responsável pela estação de abastecimento das garrafas com o óleo e a gasolina.
Nas ruas vazias de Kiev, motoristas rodam pela cidade em busca de um posto de gasolina que esteja funcionando. Desde o início dos ataques russos, na quinta-feira, as linhas de fornecimento de bens para Kiev parecem ter colapsado. Já não há mais gasolina, não há mais remédios nas farmácias e os caixas eletrônicos deixaram de ser abastecidos.
O sistema bancário funciona de forma intermitente e as poucas lojas que seguiam abertas até ontem só aceitavam dinheiro vivo. Neste sábado, praticamente tudo fechou. Apenas alguns supermercados ainda estavam abertos e concentravam filas intermináveis de clientes.
No início da tarde, as forças de segurança de Kiev anunciaram que o toque de recolher iria iniciar às cinco da tarde, ao contrário do usual horário dos últimos dias, às 10 da noite. Uma hora depois, o anúncio foi refeito. Kiev estava em toque de recolher permanente das cinco horas de sábado até a manhã de segunda-feira. Qualquer pessoa na rua seria considerada como inimigo e os soldados e as milícias têm autorização para atirar para matar.
O clima de tensão na cidade cresceu de forma dramática ao longo do sábado. Logo às três da manhã, explosões foram ouvidas por toda a cidade. Um edifício residencial foi atingido diretamente por um míssil. O ataque fez estrago, mas não deixou nenhuma vítima. Todos os moradores estavam em abrigos subterrâneos.
Ao longo da madrugada também houve relatos de batalhas intensas na região do zoológico de Kiev, onde pequenos grupos de forças especiais russas teriam tentado penetrar nas linhas de defesa da cidade.
Em toda a região central, parecia haver poucos preparativos para uma batalha rua a rua. A presença de soldados e equipamentos militares também era quase nula Pela manhã, moradores que são vizinhos ao zoológico tentavam construir barricadas improvisadas com pneus e tijolos. Dois homens cavavam um jardim de uma praça e enchiam sacos de supermercado com terra e grama, na tentativa de criar proteção semelhante aos sacos com areia compactada.
Kiev parece estar se preparando para uma nova revolução civil como a de Maidan, que levou à queda de um governo pró-Rússia em 2014, e não para uma guerra contra um dos exércitos mais preparados do mundo.
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