Religiões infectadas: Fiéis se adaptam à pandemia para exercer a espiritualidade

Crise mundial tem causado diferentes reações em comunidades religiosas, desde desobediência às medidas de isolamento a demonstrações de união

Avraham Mintz, judeu, e Zoher Abu Jama, muçulmano, rezam juntos em Israel
Foto: Reprodução
Avraham Mintz, judeu, e Zoher Abu Jama, muçulmano, rezam juntos em Israel


O presidente de Moçambique , Filipe Nyusi , declarou estado de emergência, na última segunda-feira (30), para conter a disseminação do novo coronavírus. Ainda sem registro de mortes e com dez casos confirmados, o país africano, assim como outras nações do continente, já sabia que precisaria reagir à pandemia em algum momento, mas apenas agora, diante da realidade dos números, articulou uma resposta oficial.

Antes disso, uma das primeiras orientações do governo foi a de pedir para que as pessoas evitassem aglomerações com mais de 50 pessoas, o que influenciou diretamente o funcionamento dos templos religiosos.

O impacto disso no comportamento dos moçambicanos é grande, uma vez que, independente da doutrina, as instituições religiosas têm muita influência sobre o povo. Segundo Marílio Wane , pesquisador do Instituto de Investigação Sócio-Cultural do Ministério da Cultura de Moçambique (Arpac), a maioria delas tende a atuar na conscientização das pessoas.

“As instituições religiosas aqui em Moçambique costumam lidar a questão de  uma forma bastante alinhada com as orientações do governo, em um caso como esse do coronavírus, em que há a necessidade de ação cívica e cidadã”, explica.

“De uma maneira geral, as instituições religiosas cumprem esse papel, apoiam o governo nessa questão, até porque elas tem um contato muito mais direto com a população, em muitas situação mais do que o governo. Isso é uma questão histórica aqui em Moçambique, seja a Igreja Católica, a comunidade muçulmana, hindus, igrejas protestantes neopetencostais, que são um fenômeno importante nos últimos anos aqui em Moçambique”, completa.

Apesar disso, alguns líderes preferem ir por outro caminho. Marílio conta que houve casos de pastores evangélicos que contrariam determinações de isolamento social, incentivando os fiéis a participarem de cultos, apesar de a maiorira estar seguindo as normas.

“Algumas vertentes das igrejas neopentecostais, não sei se é denominação mais correta para esse caso, têm mostrado um certo desalinho em relação às orientações oficiais, porque continuam os cultos. Eu próprio vivo próximo a uma unidade da Assembleia de Deus. Na verdade, essa unidade veio a se instalar próximo à minha casa. Eles continuam com os cultos normalmente , durante todo o dia, e isso tem sido alvo de criticas na opinião publica, nas redes sociais, na imprensa, do porque essas organizações não cancelaram os cultos”, diz o pesquisador.

Foto: Reprodução/Unicef Moçambique
Profissional de saúde higieniza as mãos em Moçambique


Cultos liberados

No Brasil, a realidade é parecida.  O pastor da Assembleia De Deus Vitória em Cristo, Silas Malafaia, chegou brigar na Justiça para manter os cultos de sua igreja durante a pandemia de coronavírus.

Ele pediu que os fiéis não se deixassem levar pelo medo e seguissem frequentando a igreja. No último dia 20, após medidas mais duras do governo estadual do Rio de Janeiro, Malafaia resolveu suspender os cultos, mas disse que deixaria as igrejas abertas, ampliando o horário de funcionamento.

Nesta sexta-feira (3), o Senado Federal excluiu as igrejas de projeto que lista organizações que podem ter reuniões e assembleias presenciais restringidas durante a pandemia do coronavírus.

Com isso, organizações religiosas foram poupadas de cumprir a quarentena pelos senadores. O texto segue para a análise da Câmara dos Deputados. Um dia antes disso, o presidente Jair Bolsonaro se manifestou a favor de um “jejum para ficar livre desse mal” sugerido a ele após um encontro com líderes religiosos.

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“Tem uma dimensão da igreja que entrou nessa dimensão econômica também. A gente vê um presidente contrário ao isolamento, conclamando para rua, que se elegeu com muito apoio de um determinado grupo evangélico.  Você também vê pastores midiáticos de grandes templos convocando e continuando a reunir, mas parte dos evangélicos não concorda com isso”, avalia Ana Lúcia Pardo , professora pós-doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Cultura e Territorialidades da Universidade Federal Fluminense.

Resistência ao redor do mundo

Um dos lugares em que se tem notado a persistência em continuar com cultos religiosos é na Índia, onde há um alto número de registro de encontros dessa natureza, mesmo depois de o primeiro-ministro Narendra Modi decretar quarentena aos 1,3 bilhão de habitantes.

Pelo menos 400 pessoas que participaram de um evento religioso indiano foram diagnosticadas com covid-19. A reunião promovida pela congregação islâmica Tablighi Jammat ocorreu no início de março e virou foco de transmissão do vírus.

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Em Israel, um caso específico tem causado grande preocupação.  A cidade de Bnei Brak , localizada perto de Tel Aviv, foi colocada em isolamento forçado nesta sexta-feira (3). Policiais vestidos com máscaras cirúrgicas e luvas cercaram o município com barreiras e estão vigiando os movimentos do cerca de 200 mil habitantes que vivem por lá.

Foto: Reprodução/Al Jazeera
Polícia está controlando a circulação de pessoas em Bnei Brak


A estimativa dos especialistas é de que 38% da população esteja infectada. Bnei Brak é conhecida por ser uma cidade com grande número de judeus ultraortodoxos. Segundo relatos, rabinos estão criticando as orientações de quarentena transmitidas pelo governo e encorajando as pessoas a continuarem a vida normalmente.

Ritos comprometidos

Enquanto alguns religiosos desafiam as normas da Organização Mundial de Saúde para manter a rotina dos cultos, outros vivem conflitos entre o respeito às tradições e a saúde pública.

No Sri Lanka , dois muçulmanos vítimas da covid-19 foram cremados, o que viola os ritos funerários da doutrina. Os islâmicos são contrários à cremação, que tem sido adotada como padrão em alguns lugares nos casos de mortos infectados pelo novo coronavírus.

Bishrul Hafi Mohhamed Joonus, de 73 anos, morreu no dia 1º de abril, e foi cremado no dia seguinte. O filho dele, Fayaz Joonus, lamentou o modo como a situação foi conduzida, sem as orações funerárias tradicionais.

“Meu pai foi levado em um veículo sob a supervisão da polícia e foi cremado. Fizemos algumas orações do lado de fora do necrotério, mas fizemos o Janazah (rito funerário islâmico) que os muçulmanos fazem tipicamente. O governo precisa tomar providências para que nós, muçulmanos, possamos enterrar nossos entes queridos, de acordo com nossos ritos islâmicos.”, disse Fayaz em entrevista à Al Jazeera.

 Espiritualidade

Em meio a esse misto de revolta, desobediência e insegurança que se intensificou nas relações humanas, cada indivíduo passa pelo próprio drama, com grande ansiedade causada pelo medo das consequências da pandemia de Covid-19 .

“Isso está afetando muito o campo psicológico . O medo de morrer, o medo de contrair o vírus, a solidão. A gente está impedido de dar um abraço, um beijo, demonstrar o afeto. Tem gente muito sozinha”, pontua Ana Lúcia Pardo.

Para muitas culturas, o momento de crise pede respostas espirituais , e por isso a mobilização para orientar fiéis tem sido grande dentro das instituições religiosas.

Na última segunda-feira (30), o Papa Francisco se manifestou criticando os governos que não adotaram medidas rígidas para conter a pandemia da Covid-19 e disse temer um “genocídio viral”. Uma das imagens mais marcantes da atual crise mundial foi a cena do pontífice rezando sozinho em uma Praça São Pedro deserta.

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Outra foto que comoveu as pessoas foi tirada em Israel, nação marcada pelo conflito desde sua fundação. A imagem dos paramédicos Avraham Mintz, judeu, e Zoher Abu Jama, muçulmano, rezando juntos ao lado de uma ambulância, correu o mundo acompanhada de mensagens otimistas, apesar da realidade do país. Os dois trabalham juntos no serviço de emergências MDA e estão atendendo casos de covid-19.

"Tentamos orar juntos porque temos muitas situações com as quais estamos lidando agora", disse Mintz ao New York Times. "O mundo inteiro está lutando contra isso. Esta é uma doença que não faz diferença entre qualquer pessoa, qualquer religião”, acrescentou Abu Jama.

Foto: VaticanNews
Papa Francisco tem feito pronunciamentos aos fiéis


No Brasil, religiões de matriz africana , como a umbanda e o candomblé, estão orientando seus adeptos a respeitarem as medidas de confinamento. A Rede Nacional de Religiões Afro-Brasileiras e Saúde (Renafro) lançou uma campanha de conscientização, divulgando vídeos de lideranças , como a Iyalorixá Lúcia de Oxum, coordenadora da Renafro na Baixada Fluminense, pedindo que as pessoas façam suas rezas de casa.

Em algumas doutrinas, como na umbanda, tempos de extremo sofrimento são vistos como períodos de transformação. “A gente está vendo diferentes leituras. Além dessa questão das matrizes africanas, temos visões parecidas entre os indígenas. Se a gente for para o hare krishna, tem a menção à era de Kali, que fala também de destruição, desfazimento, de reinvenção . É como se revelassse que um determinado tempo acabou. Como se fosse um luto, uma perda, o desfazimento de um tempo, de todo esse sistema econômico e social”, comenta Ana Lúcia Pardo.