Bairros inundados e casas destruídas após passagem do furacão Dorian
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Bairros inundados e casas destruídas após passagem do furacão Dorian

Na última semana, a passagem do furacão Dorian pela Bahamas causou sérios estragos no país. Ao todo, cerca de 50 pessoas morreram, mais de 2.500 seguem desaparecidas e grande parte da população perdeu suas casas e teve que ser realocado.

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Entre os sobreviventes, estão a britânica Nicole Fair e seus familiares, que vivenciaram todos os horrores da tragédia e a força da tempestade que devastou as Bahamas antes de seguir para os Estados Unidos e o Canadá.

Abaixo, ela faz um emocionante relato de tudo que viveu, as horas de tensão sem ter notícias do marido, a situação crítica do país após a tormenta e os planos para o futuro em um lugar que já não tem condições de acolher tantos desabrigados e feridos.

'Pompeia revivida'

"Fugimos do caminho do Dorian , meus filhos, irmã, sobrinha, sobrinho e se não fosse pelo furacão Matthew - o ensaio do Dorian - talvez não tivéssemos escapado de sua ira. Nossa experiência com o Matthew foi instrutiva. Tínhamos tudo o que precisávamos para sobreviver pós-Matthew, mas não tínhamos três coisas que eu sabia que seriam necessárias para enfrentar a verdadeira tempestade - uma estrutura de concreto em uma colina com um gerador funcionando. Então nós partimos.

Nossos maridos ficaram para auxiliar a cidade após a passagem do furacão e cuidar de nossos cães. Eles estavam em comunidades separadas, então cada um tinha suas próprias histórias horríveis. Eles experimentaram o que eu chamei de ‘a perfeita devastação da tempestade', mas eu vivia sabendo com antecedência o que estava por vir, o que eles iriam suportar e o pesadelo resultante do caos, da crise 'regras e regulamentos' e pouco contato. Durante 24 horas, não soube se meu marido estava vivo ou morto e, para muitos, o desconhecimento foi muito, muito mais longo.

Eu tenho assistido essas tempestades por tempo suficiente para conhecer suas personalidades e, uma vez que conhecemos a devastação experimentada por Elbow Cay - a primeira ilha a ser atingida- através dos relatos de um homem em um bunker de furacões, sabíamos do que o Dorian era capaz, e eu sabia que o lugar em que meu parceiro estava abrigado talvez não desse conta. Foi só mais tarde que descobrimos que uma tromba d'água (um tornado de água), que cortou uma parte do nosso canal - destruiu um lado do prédio onde meu marido estava, deixando o lado dele intacto.

Aquela tempestade estava cheia de tornados - só soubemos disso depois, quando vimos as filmagens aéreas - então até estruturas de concreto eram como casas de bonecas para esta tempestade. Então, agora, na sequência disso, o que fazemos - se nossas melhores e mais preparadas estruturas de concreto (nossos códigos de construção são tão rigorosos que foram adotados pela Flórida ) não são páreo para essas super tempestades? Construímos cúpulas? Vamos para o subterrâneo?

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 Como manter a dignidade e a compostura diante do que parece ser a morte certa? Ter as crianças lá, e precisar fazer compras para elas, cozinhar para elas e manter uma rotina ajudou, mas houve momentos em que elas viram minha irmã e eu desmoronando. Quando recebemos a primeira mensagem de Carl, e soubemos que ele havia sobrevivido ao pior da tempestade, meus três filhos e eu nos abraçamos - nós quatro juntos - e choramos. Éramos uma unidade focada em uma coisa: tirar Carl de Treasure Cay - uma tarefa que me causou mais insônia e raiva profunda do que já havia sentido em toda a minha vida.

Agora, que a adrenalina diminuiu e estamos diante da realidade de 'nada' e 'tudo'. Passo a passo, dia a dia. Nos primeiros dias, Carl compartilhou comigo o horror daquela tempestade, que todas as árvores foram achatadas pela primeira metade da tempestade, que era o lado mais fraco dela. Após o olho do furacão , o andar de cima do apartamento balançava como um barco , que ele literalmente se sentia como Dorothy no Mágico de Oz.

Agora, que a verdade da nossa situação está se estabelecendo, e eu tenho que conviver com uma exigente criança de 4 anos e 2 adolescentes que nunca deixam de brigar, vejo que tudo isso era tolerável quando tínhamos três negócios em Abaco que construímos do nada, dos quais nos orgulhávamos e sobre os quais discutíamos todos os dias. Agora, o que fazemos?

No contexto da incrível perda de vidas, comunidades, empresas, posses, documentos, nossa história é triste, mas de esperança. Ainda estamos vivos. Nossa família havia deixado Nassau há um ano por boas razões - o crime, a falta de atividades ao ar livre de fácil acesso, o trânsito -  e agora estamos de volta aqui e parece tudo surreal.

Os sentimentos oscilam muito - quando eu implorei à RBDF para ser mais transparente, reportando à Guarda Costeira dos EUA , eu queria sair deste país, mas a realidade de começar tudo de novo é demais para a nossa família agora. Em alguns momentos, quero deixar para trás minhas responsabilidades familiares e fugir - se eu fosse solteira, é o que teria feito. Eu teria me mudado para o Reino Unido e começado uma nova vida. Eu só não quero estar aqui, e os nassauvianos também não nos querem aqui.

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Já existe uma alta taxa de desemprego, muitos carros na estrada, não há moradias suficientes para todos esses evacuados. Esperávamos que muitos comerciantes qualificados em Nassau começassem a migrar para Abaco - precisávamos deles, espero que ainda precisemos deles. Um encanador de Nassau me disse que Abaco era como a 'nova cidade' para nós. Tanta terra, espaço, oportunidade. Espero que seja isso e muito mais no futuro.

Mesmo após começarmos a reconstruir, será que me sentirei a salvo novamente em Treasure Cay? Só para dar uma ideia do quão rara e especial a ilha Treasure Cay é, em 45 anos passando feriados lá e agora vivendo ali por um ano inteiro, eu NUNCA tranquei a porta da frente da minha casa ou do meu carro. Esse não é apenas um dos lugares mais lindos do mundo - é uma praia no ranking das 10 melhores do mundo - é o lugar mais seguro do mundo. Eu já viajei bastante e eu sei disso.

Quando ouvi o meu parceiro dizer que ele trancou a garagem e quando li sobre os saqueamentos que começaram na região de Marsh Harbour, meu coração foi ao chão com medo da segurança dele. O impacto disso, de que o único lugar seguro que eu conhecia no mundo, aquela península de seis quilômetros conhecida como Treasure Cay, não é mais um lugar seguro. Onde alguém vai para viver em harmonia e paz? Eu acredito que sou uma das poucas sortudas que saberia que lugares assim existiam no mundo - Nassau durante toda minha juventude - e Abaco até hoje. 

Então agora eu devo me juntar ao resto do mundo em uma competição diária por sobrevivência e segurança pessoal? Meu coração se revolta contra isso. Eu quero nossa comunidade de volta. Os “Cays” em Ábaco são conhecidos por seu trabalho duro e sua independência feroz. Eles já começaram a remover os destroços e reconstruir tudo. Eles estarão de pé e preparados bem antes do resto do continente.

Elbow Cay e Man-o-War Cay estão erguendo aportes elétricos de forma independente. Isso costumava ser ilegal - o governo disse que deveriam usar o aporte elétrico deles. Com esperança, as mudanças repentinas causadas pelo furacão vão fazer com que o governo mude essas políticas arcaicas e super controladoras que, francamente, bloqueia o progresso econômico. Por favor, Deus, que essa carnificina ao menos traga mudanças que permitam que as pessoas floresçam e vivam os sonhos delas. Estamos começando a viver nossos sonhos em Treasure Cay, o sonho de liberdade de trabalhar e de viver alinhados com as visões pessoais que temos para nossas vidas. 

Lembrando que essa história é apenas uma das histórias. Há pessoas que viveram em Ábaco ao longo de todas as vidas e ficaram para trás. Eles não quiseram sair de lá. Eles preferiram ficar e reconstruir tudo. O governo queria isso desde o começo, mas isso não é possível ainda. Há muitos destroços! Não há eletricidade! Não há água corrente! Além disso, o dano psicológico é real e muitas pessoas precisaram ficar longe da cena de devastação para acalmar as próprias mentes e os espíritos, assim como se reunir e pensar em como restaurar nossa comunidade de forma consciente para garantir que ela fique mais forte do que nunca.

Esses planos levam tempo. A primeira prioridade deveria ter sido evacuar o máximo de pessoas possível, mas o governo hesitou, sem saber como os planos políticos e econômicos levariam eles a acusações de desumanidade. Eventualmente, com a ajuda de embarcações privadas e de força aérea, a maioria dos que quiseram sair, o fizeram, mas a espera era longa e tortuosa para as famílias e amigos deles.

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A contagem não oficial de mortos é de 2,5 mil e ela ainda não fechou. Nós nunca vamos esquecer isso e talvez o governo se lembre - eles deveriam ter limpado a área chamada de “Mudd”, uma área de favelas haitiana em Marsh Harbour, onde muitos morreram.

Como eles falharam em fazer isso, a natureza fez por eles! As Bahamas não precisam mais serem duras com a imigração ilegal - pelo bem dos próprios imigrantes. A maior parte dos locais altos estavam ocupados pelos nativos. Os haitianos, em sua maioria ilegais, foram deixados nas áreas baixas. Nós simplesmente não temos espaços para ele, mas eles continuam vindo em grupos pois a vida é melhor aqui em 99% das vezes, há não ser quando um furacão enorme bate em você!

Por fim, qual é o destino da nossa nação? Vamos nos tornar a Atlântida perdida que muitos acreditam que está sob nosso oceano, uma nova Tuvalu, buscando terra para os livres na Austrália - crentes de que os Estados Unidos não nos dariam nenhuma das terras dele. Canadá talvez seja uma opção, já que eles têm  bastante terra disponível e têm histórico de serem generosos. Estaria a Terra se tornando um planeta de água - existe um filme sobre isso - com cada vez mais terra desaparecendo?

Assim que o Dorian passou, tanto o Ábaco quanto as Grandes Bahamas tiveram cerca de metade da sua massa terrestre perdida, de acordo com imagens de satélite! Ou vamos nos tornar líderes em como suportar as mudanças climáticas? Modificando a arquitetura existente e os padrões governamentais para empoderar e levantar as pessoas? Eu espero que sim, mas o júri está lá fora, e isso cabe a nós e à Mãe Natureza".

Nicole Fair

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