
Neste domingo (02), cerca de 500 candidatos realizam a segunda etapa do processo seletivo para a turma extra de Medicina, através do Programa Nacional de Educação na Reforma Agrária (Pronera) . A iniciativa inédita, desde o lançamento do edital, no dia 10 de setembro, vem sendo alvo de desinformação e ações judiciais que suspenderam o certame por duas vezes.
A princípio, a seleção, composta por uma redação e avaliação do histórico escolar, estava prevista para 5 de outubro. No entanto, após diversas críticas de entidades médicas, como o Conselho Regional de Medicina de Pernambuco (Cremepe), Sindicato dos Médicos, Associação Médica de Pernambuco e Academia Pernambucana de Medicina, a Justiça Federal em Pernambuco suspendeu o edital a partir de uma ação popular do vereador do Recife e médico Tadeu Calheiros (MDB).
Na sentença, o juiz Ubiratan de Couto Maurício argumentou que a criação de vagas para um público específico fere os princípios da igualdade, impessoalidade e moralidade administrativa previstas na lei. Ao Portal iG, Calheiros afirma que a judicialização não o coloca contrário à política de cotas, mas pontua a “extrema seletividade” presente no edital.

“O edital traz uma falácia, ao meu ver, do que é uma inclusão, mas onde, na verdade, me parece muito mais um viés ideológico. Fala-se que o processo é para todos os trabalhadores do campo, sem ser. Na verdade, é para um grupo com clara ligação com o MST. Vamos pensar o contrário: se tivesse uma seleção específica para quem é ligado ao MBL (Movimento Brasil Livre), será que seria aceito? é possivelmente que não” , frisa.
Essa suposta oferta de vagas no curso de Medicina do Pronera para pessoas ligadas ao Movimento dos Trabalhadores Rurais sem Terra (MST) é negada pela universidade. À reportagem, o reitor da UFPE, Alfredo Gomes, aponta que houve manipulação da informação sobre essa questão.
“Em nenhum momento, nós discutimos fazer um curso voltado para o movimento [MST]. Estamos conscientes de que nós conseguimos esclarecer junto à população que é um curso voltado, portanto, para assentados de maneira geral, superando essa visão preconceituosa e distorcida que políticos, interessados em se promover a partir da universidade, vem difundindo'' , disse.
O processo seletivo
A graduação pioneira é uma parceria entre a Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) e o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra), órgão vinculado ao Governo Federal . A primeira turma de Medicina do Pronera é ofertada no Centro Acadêmico do Agreste (CAA), localizado na cidade de Caruaru (PE), e conta com 80 vagas, sendo 40 para ampla concorrência e as demais para o sistema de cotas.
A formação tem como público jovens e adultos integrantes de famílias beneficiárias do Programa Nacional de Reforma Agrária (PNRA), residentes em projetos de assentamentos criados ou reconhecidos pelo Incra, integrantes de famílias beneficiárias do Programa Nacional de Crédito Fundiário (PNFC), educandos egressos de cursos de especialização promovidos pelo Incra, educadores que exerçam atividades educacionais voltadas às famílias beneficiárias, quilombolas e acampados cadastrados.
Após a primeira etapa do certame, que contou com análise documental e banca de heteroidentificação, os participantes serão submetidos a uma prova dissertativa-argumentativa, cujo tema será correlato ao contexto do Pronera, ou seja, à questão agrária, fundiária e agrícola no Brasil, à Educação do Campo, entre outras temáticas.
Além disso, os inscritos serão avaliados mediante análise de histórico escolar, cuja pontuação será calculada a partir da média aritmética das notas das disciplinas de Língua Portuguesa, Biologia e Química, referentes ao 1º, 2º e 3° anos do Ensino Médio .
Cronologia de uma seleção: inquérito, revogação, nova suspensão e vitória
Na época da suspensão, o Ministério Público de Pernambuco (MPPE) instaurou um inquérito civil para apurar possíveis irregularidades no certame. Segundo a promotora Gilka Maria Almeida Vasconcelos, a iniciativa violava os princípios constitucionais. Além disso, o MPPE exigiu que a seletiva seguisse o que era previsto na Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB) no que se refere ao ingresso ao ensino superior.
No dia 7 de outubro, a Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), através do Tribunal Regional Federal da 5ª Região (TRF5), derrubou a liminar que suspendia o edital. No entendimento do desembargador Fernando Braga Damasceno, o Pronera é uma política pública com amparo legal. Ademais, ele ressaltou que a parceria entre o Incra e universidades públicas está autorizada para a oferta de cursos destinados a assentados da reforma agrária. Logo, é permissível a criação de turmas exclusivas.
Um dia após essa decisão, a 9ª Vara da Justiça Federal em Pernambuco voltou a suspender o processo seletivo. Desta vez, o pedido de tutela de urgência partiu do vereador Thiago Medina (PL), que alegou precariedade e desproporcionalidade. No entanto, dois dias depois da suspensão, a UFPE obteve, pela segunda vez, uma nova vitória.
Entre os argumentos apresentados pela defesa, conforme Alfredo Gomes, foram salientados a autonomia da universidade, prevista na Constituição Federal, como também na LDB, e o Pronera como uma política pública de inclusão educacional consolidada com mais de duas décadas de existência.
Processo de ingresso define a formação médica?
Além dos apontamentos acerca do público-alvo da formação, Tadeu Calheiros tece críticas à avaliação dos candidatos. Para o parlamentar, a seleção ser composta por uma redação “sobre o tema da Reforma Agrária” e análise do histórico escolar põe a lisura do certame em xeque.
“É importante ter redação, mas apenas a redação, sem nenhum outro critério objetivo, vai dar margem a interpretações, no mínimo, suspeitas de que quem estará ali [na graduação] foi pré-definido. Uma análise do histórico escolar onde nem entram todas as matérias, não leva em consideração a grade curricular das escolas. Trazer um edital com viés completamente ideológico é colocar em risco a credibilidade do sistema de cotas e a credibilidade dos processos seletivos” , explana o parlamentar.
Ao Portal iG, o reitor da UFPE explicou que o formato da seletiva foi instituído pela própria universidade. Além disso, Alfredo Gomes ressalta que há dois cursos, Licenciatura intercultural indígena e Educação escolar quilombola, que seguem o mesmo molde da turma extra de Medicina do Pronera. Entretanto, ambos nunca foram centro de polêmicas ou de judicialização.
“O curso de Medicina tem, tradicionalmente, uma visibilidade muito grande na questão das elites e também o fato das corporações médicas terem determinados interesses no processo. Esse movimento [contrário] nasceu desses grupos. Por outro lado, nós temos aqueles que fazem a judicialização da lacração [sic], que são os oportunistas ligados à extrema-direita, que atacam uma instituição séria, com a UFPE, que vem prestando um serviço de relevância há muitas décadas à população. Além disso, a gente sabe que o processo de ingresso não define a formação [acadêmica] e a qualidade médica. Esses pontos são definidos durante a graduação” , ressalta Gomes.
Ao que tudo indica, o impasse ainda não acabou. Isso porque as ações movidas contra UFPE e, consequentemente, ao reitor da instituição seguem tramitando na Justiça e uma nova suspensão pode ser definida. Na última quinta-feira (30), a instituição obteve mais uma vitória judicial. Em uma nova decisão, o desembargador Fernando Braga Damasceno autorizou o andamento do processo seletivo até o Tribunal Regional Federal (TRF) julgar o mérito.
Sobre o Pronera
O Programa Nacional de Educação na Reforma Agrária (Pronera) foi criado em 16 de abril de 1998, por meio da Portaria nº 10/1998 do Ministério Extraordinário de Políticas Fundiárias, durante o governo de Fernando Henrique Cardoso .
A iniciativa promove a educação para jovens e adultos residentes em assentamentos de reforma agrária, quilombolas, acampados, educadores do campo e beneficiários do Programa Nacional de Crédito Fundiário (PNRA).
O Pronera contempla desde a alfabetização, ensino fundamental e médio, formação profissional integrada, à graduação e pós-graduação em diversas áreas relacionadas ao campo. Os recursos financeiros destinados ao programa são provenientes do Governo Federal, por meio do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra), criado na década de 1970.