Prática de fake news na saúde é 'criminosa', diz David Uip
Médico que já coordenou o Comitê Científico de Combate à covid-19 avalia o momento da pandemia no Brasil
A variante Ômicron já é responsável por quase todas as infecções de covid-19 no Brasil. Descoberta no fim de 2021 na África, a cepa chegou de forma avassaladora ao Brasil após as festas de fim de ano, e tornou mais distante a esperança do fim das medidas de restrição e, por que não, da pandemia.
Para muitos, tratava-se apenas de uma infecção com sintomas leves, mesmo mais contagiosa. Mas para o infectologista David Uip, reitor do Centro Universitário Faculdade de Medicina do ABC, ex-secretário de saúde e coordenador Comitê Científico de Combate à covid-19 do estado, não é o momento de fazer previsões sobre o fim do novo surto. As médias de casos e mortes estão subindo, desta forma, é preciso continuar alerta e redobrando os cuidados.
Em entrevista exclusiva concedida ao iG, ele também condenou a prática de espalhar notícias falsas relacionadas à saúde, e falou sobre a dificuldade na comunicação em tempos de fake news. Confira.
O senhor coordenou o Comitê Científico de Combate à covid-19 de São Paulo e esteve na linha de frente do combate à covid-19 desde o início da pandemia. Como podemos analisar o momento que vivemos agora?
Eu estou nessa história desde o primeiro dia. Nós vivemos momentos extremamente complicados em relação à covid-19, e seguramente, o pior deles foi nos primeiros meses do ano passado. Esse ano aconteceu uma coisa diferente do que se imaginava. A maioria das pessoas entendia que 2022 ia ser um ano mais tranquilo por conta das vacinas, já que uma boa parte da população brasileira completamente vacinada, Hoje próximo a 70%, uma outra parte que já teve a doença, o Datafolha estima em 20% da população, então uma boa parte ou teve covid-19, ou está totalmente imunizada.
E aí surge essa variante Ômicron, e ela passa a contaminar as pessoas a despeito de terem sido vacinadas, de terem tido a doença ou as duas anteriores. Para te dar ideia de números, e eu pessoalmente já vi mais de 2,1 mil casos de covid, entre internados e consultório. Até a Ômicron, eu só tinha visto um caso suspeito de reinfecção. Então embora a infecção viral reative, pode possa ter superinfecção, reinfecção covid, até a Ômicron, eu só tinha visto uma suspeita. A partir da Ômicron, temos uma série de reinfecções.
O primeiro paciente que eu vi com reinfecção foi em novembro, eu havia tratado dele e da família em março, e quando ele repositivou eu estranhei e pedi pra sequenciar, e era Ômicron. Me chamou atenção para um fato que até então era incomum. E assim vem acontecendo. Tem reinfecção, tem infecção nova, tem infecção em paciente imunizado e tem infecção em pacientes que tiveram a doença e foram imunizados. Do ponto de vista epidemiológico, isso é o mais importante.
Segundo fato é a manifestação clínica. A maioria dos casos tem manifestações clínicas leves, e um pouco diferente os sintomas que nós víamos com as outras variantes. Então o que nós estamos vendo, é uma característica muito interessante, o espirro. As pessoas falam que um dos principais sintomas é espirro. Segundo sintoma muito comum é a dor de garganta, e o terceiro é o mal-estar geral com febre. Poucos relatos agora têm perda de olfato e paladar, que eram sintomas comuns das outras variantes.
E mais recentemente, nós estamos vendo algumas pessoas com formas clínicas mais graves. Tanto que aumentou muito a procura de leitos de internação, aumentaram muito as internações em UTI, e também aumentou o número de mortes. Uma doença que estava sendo vista como pouco sintomática, não é bem assim.
E dá para entender quando aumenta muito o número de casos. Uma coisa é 1% de 1 milhão, outra coisa é 1% de 100 milhões. E já começamos a ver o sistema de saúde pressionar - já estava pressionado na atenção primária, e agora começa a ser pressionado nas internações de enfermaria e na UTI.
Em novembro, quando a variante foi descoberta, o Brasil começava a discutir algumas flexibilizações. Era possível se precaver, naquele momento, contra o boom de casos?
Houve um problema sério na quebra dos sistemas, então durante um grande período, quando o Ministério foi invadido, tivemos dificuldades com as informações. É complicado, quando você tem uma perda de informação é difícil gerar políticas de saúde. Fica na tentativa acerto - erro. Eu penso que foi o que aconteceu. Aqui em São Paulo em momento algum abrimos mão do uso de máscara, nós em momento nenhum permitimos que isso acontecesse. Sempre falamos sobre o cuidado com as aglomerações, distanciamento social, aglomerações.
Mas chega uma hora que, se não tiver dados, fica difícil de defender, informar a população. Subsidiado em quê? E todo mundo chegou no limite do isolamento, no cansaço, na falta de convívio. Deu no que deu, o final do ano foi uma loucura. Eu nunca recebi tanto telefonema, nunca vi tantos casos de covid-19 como nesses primeiros dias de janeiro. Foi uma coisa descomunal, pior do que qualquer momento da pandemia.
Não tem como, temos um vírus altamente infectante, que já se assemelha ao sarampo, e que não respeita vacinados ou quem teve a infecção, é muito difícil controlar.
Estávamos muito otimistas com o fim da pandemia no fim de 2021?
Acho que o mundo estava otimista e desejoso. Nós, profissionais da saúde, é uma coisa de maluco o que estamos trabalhando. Chega uma hora que você deseja que as coisas se amenizem. Mas temos que trabalhar com fatos e dados, e agora é esperar o que vai acontecer. Imagino que vai ser um tsunami.
Para nós, acompanhando - eu sou reitor da Faculdade de Medicina do ABC -, o que estamos vendo no laboratório é que está diminuindo o percentual de exames positivos. Chegou a 91%, hoje está entre 65% e 70%. A impressão que dá é que ou está estagnando, ou começando a cair. Mas ainda é cedo para dizer.
Como a população recebe, depois de quase dois anos, as orientações de isolamento e uso de máscaras?
A população está muito dividida. Eu me afastei da mídia do ponto de vista de informação porque chega um momento que não adianta. Eu falo uma coisa, e outro fala diferente. Acaba dividindo mais. Eu acho que sempre tive muito crédito, estou nisso há 46 anos. Vivi muitas epidemias. Mas mesmo assim, tem uma hora que é muito difícil, e batemos de frente com as fake news. Fake news por si só já são muito difíceis, em saúde, é criminoso. Não tenho nenhum tipo de rede social, e não adianta, está criada uma situação de crédito e descrédito.
Felizmente, os brasileiros aderiram de forma contundente à vacina, porque isso também foi contestado. Entrei para o dia a dia de pessoas que não querem se vacinar. É um papel de convencimento difícil, não é simples. A comunicação está muito difícil.
Após atuar por tantos anos na medicina, como é enfrentar mais esse adversário, as Fake News, e a tentativa de descrédito que veio com a pandemia?
Eu fui médico do Tancredo Neves, e fui médico do Mário Covas. Eu acho que a história do Mário Covas, do ponto de vista de mídia, foi um divisor de águas. Ele sempre quis que todas as informações sobre a saúde dele fossem reveladas de uma forma totalmente transparente. Isso foi inusitado. Eu também fui porta-voz do governo do Mário, vivo essa relação com a imprensa há muitos anos. A novidade são as redes sociais.
O primeiro caso de AIDS foi aqui no consultório, em 1982, e foi um negócio muito sério, complicado, e é até hoje, mas a comunicação era diferente. Hoje, em um segundo, você está sendo visto pelo mundo inteiro, tanto notícias boas, quanto falsas. O enfrentamento é muito difícil.
O nosso país está lidando da forma correta com a pandemia de covid-19?
O Brasil tem uma coisa fenomenal que é o Sistema Único de Saúde (SUS). Se não é o melhor, um dos melhores sistemas públicos de saúde do mundo. Abrangente, capilarizado, muitas vezes mal entendido, mal financiado, mas que provou que dá conta. Prova essa é a vacinação. Estou falando desde o começo da pandemia: não teríamos problemas logísticos, bastava vir a vacina. E deu no que deu. Provou a tradição do SUS em vacinação.
São Paulo tem mais de 100 hospitais, e sustentou a pandemia. No início, eram 3,5 mil leitos de UTI de adulto. No pior momento ano passado, chegamos a ter mais de 14 mil. Só um sistema robusto como o SUS sustenta uma situação tão dramática. Eu sempre trabalhei no SUS, acho espetacular. O problema é que as opiniões, os posicionamentos, ficaram divididos, e aí gera controvérsia. Com controvérsia, temos dificuldade de convencer a população.
Qual a contribuição do presidente Jair Bolsonaro na criação dessa dificuldades?
Eu vou me desculpar com você, mas até pelo que já me aconteceu, eu não falo sobre o presidente da República ou sobre o ministro da Saúde.
Voltando à variante Ômicron, já é possível vislumbrar uma queda no número de contágios, ou ainda é cedo para pensar nisso?
Primeiro eu vou criticar futurologistas. Tem gente fazendo previsão não sei baseada no que. Não dá para ter nenhuma certeza. A impressão, no entanto, é que ela vai estabilizar - talvez esteja se estabilizando -, e vai começar a cair. Mas para cair, vai demorar, no mínimo, umas quatro semanas.
Isso se o modelo se repetir como na África do Sul. Agora, quem garante que não virá uma nova variante? Quem sabe dizer o impacto dessa nova variante, como ela vai se portar. Não dá para fazer futurologia nisso. E duas coisas que eu acho fundamentais: precisa testar e sequenciar mais. Nos casos graves que vejo, trabalho na Universidade e no serviço particular, mas quando posso, peço sequenciamento para entender se é uma Ômicron grave, ou se é um rescaldo ainda de outra variante.
Se não sequenciar e testar mais, não vamos controlar a pandemia de jeito nenhum. Continuaremos sendo surpreendidos.
O país tem capacidade tecnológica de fazer mais sequenciamentos?
Não. Isso deveria ser muito mais capilarizado no Brasil inteiro. Não é simples, mas é necessário. Pesquisa, ciência, não se inventa de uma hora para outra. É toda uma história, desenvolvimento. Vários lugares do Brasil se comportaram bem, mas precisam de mais, assim como a testagem. A informação, nos sistemas brasileiros, às vezes é muito diversificada e os sistemas não se conversam. Isso tudo dificulta.
** Filha da periferia que nasceu para contar histórias. Denise Bonfim é jornalista e apaixonada por futebol. No iG, escreve sobre saúde, política e cotidiano.