'Ministério da Saúde não vai conseguir destruir o SUS', aposta Vecina

Em entrevista ao iG, ex-presidente da Anvisa critica militarização na Saúde e atuação "desastrosa" do governo Bolsonaro na saúde

Foto: Acervo pessoal
Gonzalo Vecina, um dos fundadores da Anvisa


Ex-diretor-presidente e um dos fundadores da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), o professor e médico Gonzalo Vecina avalia a atuação do governo Jair Bolsonaro (PL) como “desastrosa” no que se refere à testagem e à vacinação contra a Covid-19. Ainda assim, ele não acredita que o  Programa Nacional de Imunizações (PNI) saia desacreditado dessa gestão porque o PNI é operado, principalmente, por estados e municípios.


“Um pouco ou mais da metade dos recursos do SUS são do Ministério da Saúde, então, você governar a saúde sem ele é muito difícil, é quase impossível, mas de qualquer forma o Ministério da Saúde não vai conseguir destruir o SUS. O próximo governo vai ter uma tarefa a mais, né? Porque vai pegar muita estrutura bastante destruída. Mas funcionando ainda! O PNI vai estar funcionando e a população acreditando, mas nós vamos ter que fazer muita força pra recuperá-lo”, analisa em entrevista ao iG.


Entre os pontos que critica no atual governo federal está a grande presença de militares. Mesmo quando elogia a carta do atual presidente da Anvisa, o contra-almirante Antonio Barra Torres, em resposta aos  ataques de Bolsonaro à agência, Vecina ressalta a necessidade de separar o "componente técnico da independência" de uma agência reguladora da "mistura que os militares fazem quando invadem a vida civil". Como exemplo, cita a situação na pasta da Saúde.


"Foram mais de trinta caras que invadiram o Ministério da Saúde, absolutamente incompetentes. Nenhum deles conseguiu fazer qualquer coisa da qual a gente possa lembrar de forma positiva. Nenhum deles! Todos os militares que foram colocados ou não fizeram nada ou participaram de atos que a CPI demonstrou serem atos de corrupção", criticou.


Além disso, o professor comentou também a demanda pela liberação de autotestes de Covid-19 no Brasil e a rápida disseminação da variante Ômicron no país. Ele afirma que "algo está mudando na pandemia" e acredita que o surgimento de novos casos de coronavírus deve cair no país, assim como aconteceu na África do Sul. Confira abaixo a entrevista completa:

Na avaliação do senhor, o Programa Nacional de Imunizações (PNI) pode sair desacreditado do governo Bolsonaro?

Um pedaço do PNI é operado pelo Ministério da Saúde, que é o pedaço da política de incorporação de vacinas onde a grande importância é da Comissão Técnica de Assessoramento em Imunização, a CTAI. A CTAI foi destruída no início do governo Bolsonaro quando ele acabou com todas as comissões que não existiam por lei e depois ela foi reconstituída agora em agosto pelo próprio [Marcelo] Queiroga. Então, ela discute a incorporação de novas vacinas no Brasil. Eu acho que ela foi colocada de escanteio nessa história da vacina pra criança porque a Anvisa aprovou a vacina no dia 17, fez uma reunião e aprovou por unanimidade e o Queiroga, no dia 19 ou 20, determinou a realização da consulta pública. Mas ela [a comissão] existe. O Ministério da Saúde compra a vacina e deveria fazer campanha. Não faz campanha desde que começou essa história do teto de gastos. Então, não há convocação da população pra vacinação e em seguida tivemos essa questão da testagem também, que está sendo um desastre. Agora, os estados e os municípios, a grande maioria, têm plena capacidade de fazer a vacinação, tanto é que o Consórcio Nordeste estava preparado pra iniciar a vacinação e seria desastroso você ter nove estados vacinando e os outros 18 estados não vacinando. Seria muito ruim isso. Mas eles fizeram a sua pressão. Então, eu acho que o PNI não sofre tanto justamente por conta da existência da capacidade de estados e municípios, quer dizer, na verdade o SUS de uma forma geral é executado por estados e municípios, municípios mais da atenção básica e os estados, na média e alta complexidade. Um pouco ou mais da metade dos recursos do SUS são do Ministério da Saúde, então, você governar a saúde sem ele é muito difícil, é quase impossível, mas de qualquer forma o Ministério da Saúde não vai conseguir destruir o SUS. O próximo governo vai ter uma tarefa a mais, né? Porque vai pegar muita estrutura bastante destruída. Mas funcionando ainda! Então, o PNI vai estar funcionando e a população acreditando, mas nós vamos ter que fazer muita força pra recuperá-lo.

A agência de dados Fiquem Sabendo apurou que a cobertura vacinal infantil em 2020 no Brasil foi a pior em 25 anos. Diante do que tem acontecido, com discursos de governantes contrários à imunização, a  consulta pública e a circulação de tantas fake news sobre o assunto, o senhor acredita que a tendência no país hoje é de que os números piorem em relação à cobertura vacinal de crianças?

Eu acho que o grande problema é a instabilidade que a pandemia gerou na área da saúde e essa queda da cobertura vacinal já vinha acontecendo desde o governo [Michel] Temer pela incapacidade do estado de fazer o chamamento das pessoas pra vacinação. Então, o que eu acho que nós temos que restabelecer é a capacidade convocatória do governo. Há um prejuízo muito grande, não há a menor dúvida, porém é recuperável desde que tenha um governo interessado em recuperá-lo. E eu espero que o próximo governo tenha essa condição de recuperar o que nós jogamos fora nesses últimos seis anos.

Como ex-presidente da Anvisa, como o senhor vê essa  intimidação que a agência vem sofrendo por parte do presidente Jair Bolsonaro?

Ele não percebe o que ele está fazendo. A forma como ele está tratando não só a Anvisa, mas muitas outras entidades do governo federal é desastrosa. Veja a forma como ele tratou as crises na área do abastecimento de combustível. Foi ridícula! É óbvio que a Petrobras não é uma empresa pra ser lucrativa, a Petrobras é uma empresa pra regular o mercado acima das condições mais importantes da sociedade, que é acesso a combustível. Então, o que o Bolsonaro fez com a Anvisa, ele fez com todo o governo. Não me foi surpreendente ver ele tentando intervir na vigilância sanitária pra obedecer ao seu padrão de decisões. O cara não entende nada de vacina, vai querer interferir na aprovação de vacinas?! Desastroso! Então, eu acho que a resposta que o [Antônio] Barra Torres deu foi muito adequada pro presidente. É óbvio que eu acho que na pauta dessa briga do Barra Torres com o Bolsonaro tem um componente dessa coisa dos militares e aí eu acho que a gente tem que separar as duas coisas. Uma coisa é esse componente técnico da independência de uma agência reguladora; a outra coisa é essa mistura que os militares fazem quando eles invadem a vida civil. Eventualmente, eles podem ter um militar ocupando um cargo civil, agora esse assédio que este governo criou na estrutura civil pelos militares, eu acho que é um total engano. É errado! Os militares não foram feitos pra assumir cargos na estrutura civil. Então, nós temos que revisitar essa questão também de maneira muito importante no próximo governo.

Na sua avaliação, especialmente na saúde, os militares não deveriam estar em órgãos e autarquias?

Foram mais de trinta caras que invadiram o Ministério da Saúde, absolutamente incompetentes. Nenhum deles conseguiu fazer qualquer coisa da qual a gente possa lembrar de forma positiva. Nenhum deles! Todos os militares que foram colocados no Ministério da Saúde ou não fizeram nada ou participaram de atos que a CPI [Comissão Parlamentar de Inquérito] demonstrou serem atos de corrupção. Então, chega, né?

Foto: Arquivo pessoal
Gonzalo Vecina, um dos fundadores da Anvisa


Quanto à pandemia, o Brasil vive mais um aumento de casos e tem agora a discussão sobre o autoteste de Covid. As buscas sobre o tema dispararam no Google nas últimas semanas, há diversas pessoas pedindo pra quem vem do exterior trazer unidades e agora o governo federal disse que vai pedir a liberação da Anvisa para uso no Brasil, já que uma resolução da agência proíbe. O senhor acha que é adequado liberar esse tipo de teste?

Regra, em geral, é o que melhor deve ser feito e algo que aumenta o acesso é aparentemente positivo. Então, vamos estudar. Por que não aumentar o acesso? Porque se tratam de doenças de notificação compulsória. 

Bom, concordo que é muito importante que a gente não perca a noção do que está acontecendo no registro das doenças de notificação compulsória, por isso esses exames só podem ser feitos em estabelecimentos que façam a notificação. E se eu conseguir obter de um comprador de testes realizados em casa o compromisso de que se ele for positivo, ele comunicará ao sistema de acompanhamento de doenças e notificação compulsória do ministério? “Ah, não dá pra acreditar nos cidadãos”. Me desculpa, mas isso não é o caminho. 

Então, temos que falar, olha, quem comprar um autoteste, assume o compromisso de, se der positivo, entrar no site do ministério, usar um QR Code, fazer qualquer coisa pra comunicar que deu positivo. Com toda a salvaguarda da identidade, do isso, daquilo, daquilo outro em relação à lei de proteção de sigilo de dados. Eu acho muito positivo que existam autotestes, agora tem que garantir essa questão do registro dos casos positivos. Acho que a agência está certa em proibir porque quem executa política de notificação e acompanhamento de casos é o ministério. Então, agora o ministério pediu pra Anvisa liberar os testes. Espero que o ministério esteja se preparando pra ter um sistema que receba os dados das notificações, né? O ministério tem lá o CGLAB, que é o controle de exame de laboratório. Quem alimenta o CGLAB são laboratórios, farmácias, hospitais, então, como é que vai fazer pra população? [Precisa] Dar uma resposta pra isso.

No atual cenário da pandemia, com a disseminação da Ômicron, ainda que até então sem a mesma letalidade de outras variantes, o senhor acredita que o momento pode ser um indício de que o modo como a gente enfrenta a pandemia vai mudar?

Eu acho que nós estamos num momento de inflexão. O aparecimento da Ômicron, com essa capacidade de infectividade que ela tem, se espalha numa velocidade absurda, né? Ainda bem que chegou aqui no momento em que a gente tem uma alta cobertura vacinal, mas ainda tem muita falta de terceira dose, tem as crianças que não receberam nenhuma dose, enquanto em muitos outros países já receberam pelo menos a primeira dose - essa é uma questão que eu acho importante porque as crianças estão sem nenhuma proteção. Nós estamos vivendo esse momento de crescimento, uma doença que não tem a letalidade que as outras variantes emprestaram. A Gama matou 400 mil pessoas enquanto ela esteve aqui no Brasil, a Delta fez um estrago imenso na Europa, nos Estados Unidos e na Índia. Ela não fez estrago aqui porque chegou com uma boa parte da população vacinada. Então, nós estamos vivendo um momento muito interessante de crescimento de número de casos, de uma situação não tão grave por parte da rede hospitalar, mas como a Ômicron está muito violenta do ponto de vista de pegar pessoas, nós estamos começando a ter problemas de repor pessoas pra trabalhar, assim como as companhias de aviação, enfim… Todo mundo está sofrendo com a quantidade de casos que nós estamos tendo. Você tem, por um lado, um cenário que parece que está se fechando e, por outro, você olha pra África do Sul que teve aquele bruta pico de casos e três semanas depois começou a cair e está caindo até agora. Será que vai acontecer isso aqui? É provável que sim. Então, algo está mudando na pandemia. Vamos observar e ver o que é. Eu acho que as próximas semanas serão decisivas pra gente saber como vai ser o nosso 2022.

Diante disso, o senhor concorda com as medidas de cancelamento do carnaval que já estão sendo adotadas por estados e municípios?

Totalmente! Eu acho que não tem cabimento fazer o carnaval com a Ômicron. Pode ser que ela arrefeça até a chegada do carnaval, mas não dá pra correr o risco, né? Com esse monte de chuva, nós vamos também ter que nos preocupar muito com a dengue também. É uma realidade.

** Ailma Teixeira é repórter nas editorias Último Segundo e Saúde, com foco na cobertura de política e cidades. Trabalha de Salvador, na Bahia, cidade onde nasceu e se formou em Jornalismo pela Universidade Federal da Bahia (Ufba), em 2016. Em outras redações, já foi repórter de cultura e entretenimento. Atualmente, também participa do “Podmiga”, podcast sobre reality show, e pesquisa sobre podcasts jornalísticos no PósCom/Ufba.