Documentário flagra estrelas em momento decisivo da cultura nacional
A chamada “era dos festivais” começou em 1965, na TV Excelsior, e o formato deu tão certo que se espalhou pelas outras emissoras da época. As eliminatórias e finais eram realizadas em teatros tradicionais, enormes, e o clima, de torcida frenética: o público tinha seus preferidos e, de acordo com o candidato, acompanhava a performance vaiando ou cantando junto. Os programas serviam também de plataforma para novos artistas – Chico Buarque chegou ao estrelato em 1966, com a vitoriosa “A Banda”, e Milton Nascimento com “Travessia”, no ano seguinte –, novas tendências e como palanque para a contestação política. Uma janela e tanto para fisgar a opinião pública.
Abrigado pela TV Record, o Festival de Música Popular Brasileira (ou Festival da Record, como chegou a ser conhecido) teve seu auge em 1967 por registrar o ápice das tensões que moviam a cena na época. O samba tradicional convivia em razoável harmonia com a canção de protesto, mas a presença da guitarra elétrica, empunhada pela turma da Jovem Guarda, representava uma pretensa ameaça à integridade da música nacional, tanto que Elis e Gil chegaram a liderar uma passeata contra o instrumento e a influência da cultura norte-americana poucas semanas antes do programa – passeata, aliás, cujas imagens vêm pela primeira vez a público, resgatadas da Cinemateca Brasileira.
“Existia uma divisão muito clara, duas correntes musicais que não se falavam”, afirma Terra, um dos diretores do filme. “A partir dali, começou a se produzir um tipo de música que existe até hoje, misturando elementos regionais e da vanguarda musical no mundo inteiro, que chamavam na época de ‘som universal’. Acho que o festival de 67 foi o mais representativo, o mais importante.” Esse “som universal”, na verdade, era nada mais, nada menos do que o embrião do tropicalismo, tanto que Gil e Caetano apresentaram duas canções que se tornariam bandeiras do movimento: “Domingo no Parque”, ao lado dos Os Mutantes, e “Alegria, Alegria”, com os Beat Boys.
“Ponteio”, defendida por Edu Lobo e Marília Medalha, “Roda Viva”, com Chico Buarque, e “Maria, Carnaval e Cinzas”, samba surpreendente cantado por Roberto Carlos no auge do iê-iê-iê, completam as cinco primeiras colocadas pelo júri e que formam a espinha dorsal do documentário. A equipe do filme reuniu depoimentos saborosíssimos de todos os envolvidos e de quebra ouviu Sérgio Ricardo, nosso primeiro rockstar – incomodado pelas vaias que o impediam de tocar a música “Beto Bom de Bola”, ele destruiu seu violão em uma cadeira do palco.
“Na mesa de edição, quando começamos a montar o filme, percebemos que ou seria um filme de cinco horas, ou seria um filme superficial”, conta Terra. Por isso, material de peso, como as músicas de Nara Leão e Elis Regina, e entrevistas inéditas de Júlio Medaglia, Nana Caymmi e Jair Rodrigues, entre outras, acabaram ficando de fora. “Foi doloroso, mas estamos seguros de que era melhor ir para o essencial e se aprofundar nele do que fazer um catálogo de músicas e artistas e passar por cima de todos”, completa Calil. O excedente já tem destino certo: os extras de um futuro DVD e o site Era dos Festivais , que compila informações de todo aquele período.
Apesar disso, o filé entrou na versão final, inclusive a conversa em que Chico Buarque afirma ter estado na famosa reunião na casa de Sérgio Ricardo, onde Gil, acompanhado de Caetano, Nara e outros expoentes daquela cena, expôs suas ideias sobre o tropicalismo. A questão é que Chico diz não lembrar de nada, por estar bêbado na ocasião. “Todo nosso esforço foi, apesar de eu e o Renato não termos nenhuma intimidade anterior com essas pessoas, de tentar criar um clima que as deixasse à vontade para dar depoimentos muito pessoais, íntimos, e acho que fomos bem sucedidos”, explica Calil.
De fato, o grande mérito de Uma Noite em 67 é ter conseguido acesso a artistas geralmente avessos à imprensa, como o próprio Chico e Roberto Carlos. Para isso contribuíram as participações do crítico e pesquisador Zuza Homem de Mello, ele mesmo uma das figuras do festival, como técnico de som, e da produtora Beth Accioly, com livre acesso na cena cultural carioca. Não deixa de chamar atenção, no entanto, que os dois diretores à frente do documentário nem haviam nascido na época do festival.
“São artistas que a gente admira muito, parte fundamental da trilha sonora de nós dois, de nossos pais e não duvido que sejam de nossos filhos no futuro”, diz Calil. “Esse festival foi organizado há 40 anos e ter dois jovens preocupados em fazer um filme a respeito só prova o grau de permanência dos artistas, a qualidade da música que eles fizeram e o nosso interesse por aquele momento histórico. Conversamos com muita gente da nossa idade e existe uma curiosidade enorme por aquele período. Espero que o filme comece a preencher uma lacuna e desperte esse interesse.”
Assista ao trailer de Uma Noite em 67 :