Matheus Pichonelli

Lô Borges: o som dos nossos sonhos também não envelhecem

Cantor e compositor deu voz e alma ao maior álbum da música brasileira. E agora se calou

O cantor e compositor Lô Borges
Foto: Divulgação
O cantor e compositor Lô Borges

No fim de 2008, meus pais tinham acabado de se mudar para uma casa nova, em Arararaquara, e não tinha muitos móveis e equipamentos por lá a não ser uma TV sem cabo e um velho aparelho de DVD. Na antevéspera do Natal, leve para aquela casa alguns itens que peguei na “feirinha” da Ilustrada, o caderno cultural da Folha de S.Paulo, onde trabalhava.

A “feirinha” funcionava assim: de tempos em tempos os repórteres do caderno juntavam numa mesa os produtos que as distribuidoras enviavam para a crítica e quem passasse por lá poderia levar o que quisesse. Livros e filmes, principalmente.

Cheguei na casa dos meus pais com o DVD “Lô Borges Intimidade” na mochila. E, na impossibilidade de ver a programação regular de TV, deixamos tocar aquele álbum até o ano seguinte. E o outro. E o outro. Eu nunca mais parei de ouvir aquele pocket show.

Conhecia a maioria das músicas ali. Quem escancarou aquele portão, muitos anos antes, foi meu tio Mauro, um fã do Clube da Esquina e de toda a turma de Minas.

Minha canção favorita, até então, era Clube da Esquina 2, aquela originalmente pensada por Lô Borges e Milton Nascimento para ser instrumental. Mas a Nana Caymmi bateu o pé e convenceu o irmão mais velho do Lô, Márcio Borges, a colocar letra naquelas melodias. O resultado todo mundo conhece: desde então todo mundo aprendeu cantando que os sonhos não envelhecem.

Mas naquele DVD que revisitava a carreira do cantor e compositor estava também uma música menos conhecida, Clube da Esquina 1, que não entrou no álbum homônimo. Jamais tinha dado muita atenção para aquela letra até aquela virada de ano.

Foi a primeira parceria entre Milton e Lô. E se tornou rapidamente a minha favorita. Não daquele show. Mas da vida.

A canção é um hino à amizade. Descreve amigos em uma esquina qualquer de uma noite qualquer. Eles dividem a lua, a noite e a até a solidão. E ali a noção de tempo e espaço se mistura.

Alguém que canta lembra daquele momento. Mas quem está ali está à espera do dia, naquela calçada, fugindo pra outro lugar. São os planos de futuro quem deixa o lugar de origem para ganhar o mundo.

Percorrem o caminho das pedras sonhando com um “grande país”.

Mas os grandes planos se confundem com os pequenos desejos. “Mas agora eu quero tomar suas mãos. Vou buscá-la onde for. Venha até a esquina. Você não conhece o futuro que tenho nas mãos”.

De fato, ninguém daquela esquina de Santa Tereza, em Belo Horizonte, sabia exatamente o futuro que tinha nas mãos quando nas mãos estavam os instrumentos que mudariam a história da música para sempre.

Caçula da turma, Lô era a voz e parte da alma Clube da Esquina, para muitos o maior álbum brasileiro de todos os tempos. “Trem Azul”, “Tudo o que você podia ser”, “Nada será como antes amanhã”, “Um Girassol da cor de seus cabelos”. Só pedrada.

Muitos anos depois, em 2022, cobri um festival de cinema em BH dedicado aos músicos que tanto se inspiraram nos fimes da Nouvelle Vague. A pandemia impediu que parte deles aparecesse por lá. Foi assim que não conheci o Lô Borges – mas anotei tudo o que seu irmão Márcio falava sobre os filmes e as músicas e as amizades.

Saí de lá, no Minas Tênis Clube, e fui até o edifício Levy, na avenida Amazonas, onde vivia a família Borges nos anos 1970. Eles tinham como vizinhos um jovem datilografista chamado Bituca. Saíram pra beber ym dia e compuseram algumas músicas. O resto é história.

Ao chegar lá, minha vontade era lamber a maçaneta da porta como fez a Rita Lee ao conhecer o estúdio Abbey Road, dos Beatles, em Londres. Me contive. Eram tempos de pandemia.

Neste domingo (2) aquele menino que deu voz e alma ao Clube da Esquina se calou. Tinha 73 anos e estava internado devido a uma intoxicação medicamentosa.

Lô nos deixou em um momento em que o ídolo e mestre, Milton Nascimento, está diagnosticado com demência e se afastou do palco. Não seria só um clichê dizer que o corpo de um e a memória de outro são pedaços riquíssimos de um Brasil que se vai. É também errado. Os sons de seus sonhos também não envelhecem. De novo na esquina aqueles meninos estão -- e levaram pra lá um país inteiro. Eles se achavam mortais. Não eram.


*Este texto não reflete necessariamente a opinião do Portal iG