Miriam Sanger

Síria: a real face do genocídio

As terríveis imagens da prisão Sednaya, na Síria, escaparam do olhar da mídia e da ONU

Pessoas se reúnem em frente à prisão de Sednaya, em Damasco, em 9 de dezembro de 2024
Foto: Omar HAJ KADOUR
Pessoas se reúnem em frente à prisão de Sednaya, em Damasco, em 9 de dezembro de 2024


As cenas mais impressionantes registradas logo após a queda do regime do ditador sírio Bashar al-Assad não estão relacionadas com a atuação do exército rebelde que o derrubou, mas sim com a exposição do interior da prisão Sednaya, localizada nos arredores de Damasco, capital do país. Conhecida pela população como “abatedouro humano” , por ali passaram, segundo as primeiras estimativas divulgadas, mais de 1,3 milhão de sírios desde 2011, ano do início da sangrenta guerra civil no país. Estima-se que 20% deles morreram ali em resultado de tortura e maus-tratos.

“Assim que os rebeldes tomaram Damasco, cerca de 50 mil pessoas correram para Sednaya para tentar descobrir se ainda havia guardas por ali e, se não, tentar localizar seus familiares. As imagens registradas internamente são cenas de horror: máquinas de tortura, enormes sacos plásticos repletos de ossos, sangue fresco pelo chão e gritos de prisioneiros vindos de andares inferiores”, contou em uma entrevista Ahed Al Hendi, dissidente sírio residente nos Estados Unidos que fundou a ONG Jovens Sírios pela Justiça.

Muito embora Hendi e outros oponentes da ditadura síria tenham feito campanhas internacionais de conscientização sobre o que acontecia sob o regime Assad, nada mudou e acredita-se que existam dezenas de prisões deste mesmo tipo espalhadas pelo país – o enorme complexo de Sednaya está localizado a 30 quilômetros da capital.

O nome disso é genocídio

Bashar al-Assad, presidente da Síria por 24 anos, é um dos melhores exemplos atuais de como atua um líder genocida. “O que aconteceu na Síria foi um genocídio real e Sednaya deixa explícito seus sinais: o uso de maquinário para eliminação de corpos, o inconcebível número de prisioneiros assassinados, e o uso indiscriminado da violência contra homens, mulheres e crianças”, afirmou Joseph Braude, presidente da ONG Center for Peace Communication, empenhada na solução de conflitos racionais no Oriente Médio e na África, cujos funcionários registraram em primeira mão o interior da prisão.

As imagens de Sednaya chocaram o Oriente Médio, mas ganharam muito pouco ou nenhum destaque em países como o Brasil, que em 2010 ofereceu ao ditador sírio Assad a honraria do Grande Colar da Ordem Nacional do Cruzeiro do Sul, a mais alta distinção oferecida pelo governo brasileiro para personalidades estrangeiras.

Também a ONU e governos internacionais não deram até agora a devida atenção ao que está sendo descoberto no país. Assim, perdem a oportunidade de usar corretamente a palavra “genocídio”, empregada de forma tão leviana e incorreta nos últimos 14 meses em relação a Israel que acabou por perder completamente sua força e significado.

O papelão da CNN

Houve um evento hilário no meio de todas as revelações trágicas do que ocorreu na Síria nas últimas décadas: o erro grotesco – ou, dizem alguns, a atuação cinematográfica – de uma repórter da CNN. Ao ingressar na prisão Sednaya, ela “encontrou” em uma das celas um homem que afirmou estar preso ali há três meses. Sem hesitar, a jornalista Clarissa Ward começou a produzir uma reportagem mostrando os momentos em que ela “liberta” o homem, sem atentar a detalhes importantes, como o fato de ele estar limpo, bem-vestido e bem-alimentado demais para ter passado tanto tempo aprisionado.

Depois que a reportagem foi ao ar, revelou-se que aquele que fingiu ver a luz do dia pela primeira vez em meses é, na verdade, Salama Mohammed Salama, ex-oficial de inteligência do regime Assad. A questão, agora, é descobrir se a jornalista planejou o evento ou se foi vítima dele – até agora, ela não veio a público para contar a sua versão.

Ah, CNN…

Bobinha ou ardilosa: jornalista da CNN ( assista ao vídeo ) diz ter salvado um prisioneiro sírio que é, na realidade, agente de segurança da ditadura Assad.

** Miriam Sanger é jornalista, iniciou sua carreira na Folha de S.Paulo e vive em Israel desde 2012. É autora e editora de livros, além de tradutora e intérprete. Mostrar Israel como ele é – plural, democrático, idiossincrático e inspirador – é seu desafio desde 2012, quando adotou o país como seu.