Foi-se o tempo em que o gato é quem garantia a afinação da bateria das escolas de samba. O couro do animal era considerado o melhor para a fabricação de tamborins e cuícas, como registra em sua obra Luís Melodia, um compositor do bairro carioca onde nasceu a primeira escola do país, a Deixa Falar, rebatizada de Estácio. Diz a lenda que no tempo dos saudosos Cartola, Carlos Cachaça e Natal, os felinos desapareciam da Favela da Mangueira e do subúrbio de Madureira — berço das tradicionais Portela, Império Serrano, além da área da Central - Deixa Falar e Vizinha Faladeira.
Essa "caça às bruxas", no caso aos felinos, acontecia assim que batia o primeiro toque do surdo anunciando a nova temporada de ensaios para o próximo carnaval. Noel Rosa, de Vila Isabel, também cita essa prática em "Cem Mil Réis", assim como seu contemporâneo Orestes Barbosa.
Agora, os tempos são outros. Os conceitos mudaram. Os gatos já podem circular tranquilamente pelos arredores das escolas de samba, assim como outros animais — afinal, não é segredo para ninguém a influência da contravenção do jogo do bicho nesse setor cultural brasileiro.
Se os gatos deixaram de ser usados para a percussão, outros seres da fauna ainda estão incorporados aos desfiles para sustentarem a vaidade desenfreada pelo luxo, em fantasias e carros alegóricos. Alguém já parou para pensar em quantas aves ainda são sacrificadas para aquele festival de plumas e penas de faisões? Justiça seja feita... Esse sacrifício vem sendo reduzido na Marques de Sapucaí, não somente pela consciência ambiental, mas impactado pelos seus altos preços. E até por conta das dificuldades econômicas, as escolas menores costumam ser as que mais experimentam em materiais alternativos. As agremiações que evoluem pela Intendente Magalhães (subúrbio carioca), agora transferidas para a Ernani Cardoso, dão de dez a zero nas grandes em termos de criatividade.
Jacarezinho sem couro de jacaré
Um bom exemplo é a Unidos do Jacarezinho, que disputa a série Prata. Tem como facilitador o enredo reeditado de 2002 em homenagem ao apresentador de TV infantil Daniel Azulay, que ensinou crianças das décadas de 80 a 2000 com seus desenhos e dobraduras de papel.
"Estamos nessa pegada até porque o Daniel Azulay foi precursor nessa questão de sustentabilidade, reaproveitamento de material. Cabe ao carnavalesco e a direção de carnaval transformar em realidade fantasias e alegorias com o que é possível. A Jacarezinho há algum tempo já realiza seus carnavais com o reaproveitamento de materiais que recebe de outras escolas ou com o que é mantido pela escola ao final de um desfile", ressalta o carnavalesco Flávio Lins.
A escola conta com o engajamento dos profissionais de ateliê e barracão, vindos da comunidade, assim como outros segmentos, mantém as raízes na comunidade do Jacaré. Além da contratação de artistas locais na reprodução de fantasias e alegorias, proporciona aulas de percussão, samba e bailado de casal – além de permitir que sua quadra funcione à serviço da comunidade através de outras iniciativas locais.
Ainda no exemplo vindo das de baixo, a Liga Independente Verdadeira Raízes das Escolas de Samba (LIVRES) contam esse ano com o apoio e parceria do município de Cachoeiras de Macacu - um dos mais verdes do estado.
Delírios do Salgueiro
Mas não são apenas as pequenas que estão preocupadas com a reciclagem. A gigante Salgueiro, que este ano tem como enredo "Delírios de um paraíso vermelho", mostrará que lixo pode virar luxo. A escola trará duas alas feitas inteiramente de restos de acetato e tecidos reaproveitados de carnavais anteriores, uma homenagem à criatividade do mestre Joãozinho Trinta, que extraiu o luxo do lixo no emblemático desfile da Beija Flor em 1989 "Ratos e urubus, larguem minha fantasia". A escola vermelha e branco mostra neste carnaval o quanto a cultura da reciclagem e reutilização de material é importante para a redução de custos e proteção ao meio ambiente.
Betânia ambiental
O Carnaval de Belo Horizonte, que praticamente inexistia, vem crescendo nos últimos anos e já conta com quase 500 blocos. O destaque é para o "Bethânia Custosa", que reverencia musa da MPB e desenvolve conceitos ambientais, como os riscos dos lixões e proteção das nascentes em sua filosofia.
"Nosso bloco é ligado a um movimento de ativismo urbano que procura relacionar a festa do carnaval às ações que propiciem valores positivos. Defendemos o meio ambiente, a arte popular e a diversidade”, enfatiza o professor Marlon Fabian, integrante da coordenação do bloco.