Curso de Direito remoto aprofunda crise da democracia

Um curso que vê o Direito como simples instrumento e que encaixota a formação de seus alunos de acordo com objetivos mercadológicos é um desserviço não só aos alunos e ao Sistema de Justiça, mas também ao país

Foto: Sidekick
Curso de Direito remoto aprofunda crise da democracia

Recentemente foi noticiado que o  Ministério da Educação (MEC) autorizou a criação do curso de graduação em Direito de maneira 100% remota em uma faculdade no Recife. O curso integralmente online traz ainda uma outra inovação: desde o primeiro período, os alunos terão um direcionamento conforme seu objetivo profissional: advocacia, concurso público ou docência.
Tanto a eliminação da aula presencial , que pedagogicamente é muito rica e insubstituível, como essa proposta de direcionamento específico são produtos da transformação do ensino em mercadoria, da prevalência de uma visão de mercado em detrimento do conhecimento jurídico teórico, filosófico e científico.

Trata-se de uma concepção operacional do Direito, simplificadora, que reduz o bacharelado a um curso instrumental, com o objetivo de formar tecnólogos do Direito, aptos à realização de tarefas normalmente reprodutivas de conhecimento, e não à produção de novo conhecimento em funções operacionais.

Desconsidera-se, nesse modelo, que o papel fundamental do profissional do Direito, esteja ele em qual função estiver, é ser um guardião, um defensor incondicional dos direitos, um papel, portanto, político-social, e não meramente operacional.

Sem entrar no mérito da qualidade do curso, que não se pode ainda avaliar, é preciso salientar a importância de que o aluno de Direito tenha uma compreensão histórico-conceitual e filosófica do Direito. É essencial que conheça a história dos direitos na modernidade, que se debruce sobre a evolução do constitucionalismo, sobretudo, a partir dos séculos XV e XVI, até os nossos dias.

A compreensão filosófica, teórica e histórico-conceitual das constituições rígidas do pós-guerra lhe dará base para interpretar as leis de forma não arbitrária, para que possa entender o que os direitos protegidos por essas normas significam no plano material. E isso só é possível a partir de um estudo aprofundado de como se deu o processo de construção de sentido desses direitos desde o início da modernidade até hoje.

O Direito precisa ser interpretado segundo uma construção histórica, uma tradição de sentido, e não da visão de mundo do intérprete. Isso é extremamente importante, pois são justamente as interpretações arbitrárias do Direito que têm ocasionado sua degeneração no mundo contemporâneo, aprofundando a crise da democracia constitucional que atravessamos.

Essa modalidade de curso técnico-operacional contribui para o agravamento dessa crise, na medida em que forma profissionais com um conceito de Direito absolutamente amesquinhado, inaptos a observar o sentido histórico que as expressões constitucionais e legislativas carregam.

Um dos principais fatores de crise da democracia constitucional no mundo contemporâneo é o fato de profissionais do Direito, como juízes, membros do Ministério Público e advogados, irem às Leis e à Constituição não para buscar no Direito a solução para os casos concretos, mas para nelas buscar argumentos para realizar o que desejam — e não o que o Direito deseja.
Há nesse exercício uma forma ultrassubjetivista de interpretação do Direito, que Wittgenstein chamava de apropriação privada do sentido, ou seja, o sentido comum que deve ser atribuído à linguagem acaba sendo apropriado pelo intérprete conforme seus interesses e crenças pessoais.

Um curso que vê o Direito como simples instrumento e que encaixota a formação de seus alunos de acordo com objetivos mercadológicos é um desserviço não só aos alunos, que terão uma formação deficiente, e ao Sistema de Justiça, que verá empobrecida sua forma de funcionamento e suas decisões, mas também ao país, pois incapacita esses profissionais a desempenharem o papel que deveriam numa democracia constitucional.