*Meu querido Michel,
Não. Isso não é resenha do livro quase homônimo do Amós Oz.
Isso é ao mesmo tempo um libelo, um grito, e uma denúncia. É uma forma de organizar o pensamento e um processo de catarse dirigido contra as claras injustiças históricas em curso.
Enquanto escrevo posso imaginar sua angústia. Quero dizer, posso especular através de muitos exercícios mentais pelo que você tem passado. Espero estar errado, mas suspeito que você não lerá esta carta tão cedo, mas o dia da sua liberdade vai chegar. Creia-me, ainda que minha fé esteja em guerra aberta contra minhas sensações negativas.
Aqui fora ainda estamos guardando o luto pelas três moças brasileiras e o rapaz assassinados pelos terroristas . Você provavelmente os conhecia, Ranani Nidejelski Glaze, Bruna Valeanu, Karla Stelzer e uma filha de brasileiros Thelet Fishbein Zaaror. E continuamos torcendo pela plena recuperação física e psicológica dos sobreviventes e feridos: Rafael Zimmerman, Daniel Zimerman e Rafaela Treitsman.
É que eu acredito em uma espécie de sincronicidade. E tenho esperança que você e os demais captem a energia benévola que muitos estão emanando daqui de fora sobre você, e os outros sequestrados pelos terroristas do Hamas .
Em primeiro lugar sei que tudo isso é uma loucura insustentável, mas o que posso fazer se me resta um pouco de fé? Pode até chamar de pensamento mágico. É que pelo menos aí de dentro você não está enxergando a absurda inversão de conceitos, linguagem e valores que temos testemunhado aqui do lado de fora.
Talvez, você aí dentro de um buraco escuro, neste metro maligno que você está, sem acesso ao mundo externo há 40 dias, fantasie que o mundo está indignado com tudo o que aconteceu no dia 07/10. Muito provavelmente você está pensando que houve consenso absoluto na condenação dos atos abomináveis praticados pelos capachos dos Aitaolás. Que, numa corrente humana nunca vista a humanidade decidiu de forma definitiva e irrevogável travar uma luta, custe o que custar, para eliminar a subhumanidade representada pelo terror e seus financiadores.
Mas não, Michel. Sinto. Não foi o que aconteceu. Não desta vez. Há sempre padrões duplos, um “mas”, um “porém”, um “não é bem assim” que impede que as nações enxerguem quem são, de fato, os grandes inimigos da humanidade, e da liberdade. Sinto muitíssimo. Adoraria ter notícias melhores para lhe dar. E como estão os bebês, as mulheres, os idosos? Sei há muitos feridos junto com vocês. Como nos sentimos impotentes sem poder mudar a situação e o sofrimento de vocês.
Michel, todos aqui estamos rogamos por paz, mas não sem antes vocês voltarem para nós.
Se você me perguntasse quem está invertendo tudo? Difícil apontar um único culpado, talvez todos, mídias, sociedade, redes sociais, governos omissos ou muito proativos na direção errada. E nós mesmos, por termos ficados calados enquanto a enorme onda antissionista, a novíssima forma que o antissemitismo adotou para odiar judeus. Uma onda que progrediu de forma abjeta, repulsiva e o pior, livre de ônus. Criou-se um álibi para ser racista, ele funciona quando se trata de pessoas como você, caro Michel.
Sim, a resposta é essa mesmo que cogitaste: por você ser um judeu.
Por último, talvez fazendo uma autocritica mais ampla e retrospectiva: por não termos falado o suficiente sobre vocês, e por isso me desculpo e me recrimino. Se a culpa não é boa conselheira, pelo menos é uma forma de nos coagir ao compromisso da compaixão. Se eles entendem?
Não, Michel, sinto, a compaixão deles é seletiva.
Preciso dizer que por aqui o presidente acaba de dizer que quem agride e a vítima são iguais. Quando ouvi cheguei a chorar. Não era raiva. E se quer saber a composição da lágrima: ela continha cristais de perplexidade e o sal da incompreensão. É que o chefe do executivo trouxe a discussão sobre o significado da equivalência moral. Isso mesmo, querem ludibriar a opinião pública, que, graças a Deus, não é mais tão ingênua. O povo nunca foi bobo. Em outras palavras, e trocando em miúdos: tiveram a covardia de afirmar que os sequestradores que estão aí mantendo vocês presos nos túneis, sabe-se lá em quais condições, são parecidos com o exército que está tentando libertar você e os outros 238 sequestrados, e, de quebra, libertar os reféns palestinos que não querem viver sob uma ditadura fanática, pseudo religiosa e sanguinária.
Sei que é perturbador, mas essa é a posição dogmática e anti-diplomática do mandatário geral do Brasil, que apresenta um claro viés e está muito longe de uma posição equilibrada. Aliás, eles têm se aliado ao que há de mais retrógrado em termos de política internacional. Chama de multilateralismo, mas é pura ocidentofobia. A boa notícia é que existem vozes corajosas nos outros poderes da República que se opõem ao populismo irresponsável.
Se, para alívio geral, muitos brasileiros que estavam em Israel e em Gaza chegaram aqui graças a ação dos aviões da Força Aérea Brasileira , nós passamos a nos perguntar novamente: parece que tem gente que foi deixada para trás. Então perguntamos: e quanto às famílias das moças brasileiras que foram brutalmente assassinadas e seus corpos despedaçados pelos terroristas? Foram recebidas pelas autoridades do executivo em sessões públicas? Não. E se você me perguntasse se alguns brasileiros valem mais do que outros? Um amigo desembargador acaba de nos lembrar do Artigo 5º da Constituição Federal: “O governo brasileiro não pode tratar brasileiros de forma desigual.”
Michel, parece ser o caso.
Parece, não, estamos comprovando que é o caso, mas juro, estamos lutando para mudar esta transgressão das leis.
Michel, por fim, envio minha força e solidariedade para ti. Falo por mim e pela maioria quase absoluta dos brasileiros que entendem que isso não durará para sempre. Ou melhor, que isso precisa ter um fim. Um fim justo.
A humanidade está em sono profundo, mas há um pesadelo, totalmente acordado. A diferença é que desta vez, Michel, não seremos adormecidos por drogas, venenos e encantamentos políticos baratos, despertaremos a tempo, eu diria que já está acontecendo.
Breve, em nossos dias.
*Para Michel Nisenbaum e os outros 238 sequestrados