Imagine, apenas imagine, que o Paraguai tenha resolvido se vingar da derrota que sofreu em abril de 1870, há exatos 150 anos, e tenha decidido invadir o Brasil . Após um ataque fulminante, em poucas horas dominou as tropas aquarteladas no Paraná e no Mato Grosso do Sul. Para conter os invasores, seria necessário o deslocamento de tropas para a zona do conflito — mas isso que exigiria gastos extraordinários , não previstos no orçamento . Para garantir os recursos seria necessária uma declaração formal de guerra. Essa providência é uma prerrogativa do Presidente da República mas para toma-la, de acordo com o artigo 49, inciso II, da Constituição brasileira, ele precisaria de uma autorização de competência exclusiva do Congresso Nacional. O que aconteceria? Haveria um Orçamento de Guerra ?

Batalha do Avaí, na obra de Pedro Américo: o Congresso age como se o Brasil não estivesse em guerra e custa a tomar as medidas sob sua responsabilidade
Pedro Américo / Domínio Público
Batalha do Avaí, na obra de Pedro Américo: o Congresso age como se o Brasil não estivesse em guerra e custa a tomar as medidas sob sua responsabilidade

Tudo isso, claro, é pura ficção — mesmo porque o governo paraguaio tem muito o que fazer para viver preso ao passado, como fazem os políticos brasileiros. Mas imaginar os desacertos que haveria num caso como esse é muito mais do que uma simples coincidência. O presidente da Câmara , Rodrigo Maia , diria numa de suas entrevistas sonolentas que não há clima político para uma guerra tão radical. Diria também que os deputados farão a sua parte e que, apresentarão um projeto de declaração alternativo ao do governo com a proposta da “guerra possível”.

Para isso, diria, teriam que ser asseguradas as garantias de que os soldados brasileiros não lutariam mais do que oito horas por dia e todos teriam direito a receber um adicional de periculosidade. Afinal, soldados são servidores públicos e não é só porque o país está sob ataque que seus direitos adquiridos podem ser desrespeitados...   

A discussão se prolongaria e, por alegada falta de clima, a decisão seria empurrada com a barriga até que se encontrasse uma maneira de contemplar a todos. Nessa hora, o presidente do Senado e do Congresso , David Alcolumbre , entraria em cena. Ele daria um jeito de informar a imprensa que recomendou enfaticamente ao presidente da República que mantivesse o comandante das tropas em seu posto — não se muda um comandante no calor da batalha. Quanto à declaração de Guerra propriamente dita, bem... ela teria que esperar pela terça-feira seguinte. Afinal, os parlamentares não têm culpa se a guerra teve início justamente numa quinta-feira, quando todos sabem que as decisões do Senado da República precisam ser precedidas de um debate amplo e profundo etc, etc, etc...

LÍDERES SINDICAIS

Para encurtar a história, uma decisão só seria tomada depois que fossem asseguradas  verbas extraordinárias mesmo para quem não estivesse diretamente envolvido nos combates. Enquanto isso, a guerra lá fora estaria correndo solta, com sacrifício de vidas e destruição de recursos. Os invasores já teriam avançado até as portas de Brasília e o país estaria à beira de uma derrota...

Caricaturas à parte, é essa a impressão que se tem diante da lentidão e da ânsia de protagonismo que têm marcado as decisões de Maia e Alcolumbre em relação à guerra (esta, real) que o país trava neste momento contra o coronavírus . Com todo respeito, Suas Excelências dão a impressão de agir mais como líderes sindicais interessados em atender os interesses de seus representados (no caso, os parlamentares das duas Casas) do que como chefes de um dos pilares da República. Isso é lamentável.

Dias atrás, só para recordar, Maia conquistou aplausos ao anunciar que os salários dos servidores do Congresso, inclusive dos parlamentares, sofreriam reduções para fazer frente às necessidades diante da crise. O país inteiro passou, então, a esperar pelas medidas. E estaria esperando até hoje se Maia (não por iniciativa própria, mas porque foi perguntado) não tivesse voltado ao assunto. Ele disse, então, que o que ele disse não foi bem o que quis dizer...

Não se trata de implicância nem de desdenhar do papel do Legislativo que, não custa insistir, é fundamental em qualquer democracia. O problema é que os movimentos de Maia e Alcolumbre ao longo da pandemia passam a impressão de que os parlamentares desta legislatura trocaram o “ toma lá, dá cá ”, que antes pautava as relações do Executivo com o Congresso, pelo “ dá cá, toma lá ”. Sempre que um projeto do governo cai em suas mãos, eles só o colocam para andar se antes derem um jeeito de aumentar o custo para o contribuinte. E nunca estão dispostos a entregar ao país um centavo daquilo que consideram deles por direito.  

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FALTA DE CLIMA POLÍTICO

É isso o que se vê, por exemplo, na votação do tal Orçamento de Guerra destinado a prestar ajuda aos estados e municípios durante a crise. O projeto original foi entregue ao Congresso em junho de 2019 pelo secretário do Tesouro Nacional , Mansueto Almeida . Por mais importante que fosse para os estados, o projeto — que previa a flexibilização do pagamento das dívidas das unidades da federação com a União — hibernou solenemente nos escaninhos da burocracia legislativa. Ao melhor estilo da dupla Maia e Alcolumbre e por alegada “falta de clima político ” foi sendo deixado para amanhã, para depois, para o mês que vem. (Pelo que se conclui diante das atitudes da dupla da modorra, o Congresso Nacional é um ambiente inóspito para a política: nunca há clima para decidir sobre o que é importante).

Talvez tivesse morrido no esquecimento se a crise do coronavírus não tivesse surgido e Maia não se visse compelido a por o projeto para andar. Exatamente como aconteceu com a votação da Reforma da Previdência, no ano passado, ele confiou a relatoria do texto  a um parlamentar amigo (neste caso, o deputado  Pedro Paulo — DEM-RJ). O relator, então, tratou de incluir no texto favores que iam muito além do razoável mesmo numa situação de guerra como a que o país está enfrentado.

Pelo projeto de Pedro Paulo, os estados e municípios, até o final do ano, não pagariam um tostão do que devem à União (o que é uma medida totalmente defensável diante da crise). Além disso, poderiam se endividar em até 8% de suas receitas correntes líquidas, sempre com o aval de Brasília. Isso não tem cabimento. Poderia significar um extra de R$ 65 bilhões a mais na conta do contribuinte brasileiro.

DOUTOR ULYSSES OU MAZZILLI?

O governo resolveu agir para evitar que um ataque ainda mais devastados às contas públicas fragilizadas e o rombo deve ficar pela metade. Maia adiou a votação para esta quinta-feira e é provável que o projeto seja aprovado. Esse é apenas um exemplo. A despeito do desfecho que a votação do tal “Orçamento de Guerra” vier a ter, o que se pretende aqui é o hábito do Congresso de agir a seu próprio ritmo e criar toda sorte de dificuldades para os que têm a responsabilidade de agir. Isso é triste.

O Poder Legislativo brasileiro ganhou prestígio sob o comando de homens como Ulysses Guimarães — que se valeu de sua autoridade para assegurar a democracia, quando ela estava esteve sob ameaça no momento que deveria ter sido o da posse do presidente Tancredo Neves. Na outra ponta, o mesmo poder se amesquinhou nas mãos de políticos como o deputado Ranieri Mazzilli, que declarou vaga a presidência da República quando o presidente João Goulart ainda estava no Brasil. Assim, ele legitimou o Golpe de 1964.

É hora de Maia e Alcolumbre escolherem o papel que querem desempenhar aos olhos da história. Eles ainda podem assumir a liderança e tomar a frente nas decisões difíceis que precisam ser tomadas neste momento que tem cobrado um preço alto do cidadão. Ser líder, às vezes, exige a capacidade de dizer não e de apontar um caminho diferente do que é mais fácil. Mas eles também podem seguir como porta-vozes de parlamentares que parecem mais preocupados com os próprios interesses do que com o destino do país.

O que não podem fazer é bater no peito com a autoridade de um doutor Ulysses mas, como Mazzilli, agir de forma dissimulada. O que não podem é se fazer de defensores da democracia quando, na verdade, pouco fazem para protegê-la dos perigos reais que elas enfrentam neste momento difícil. Estamos em guerra. Cabe a eles não permitir que as providências necessárias  para enfrentar o inimigo seja adiadas até o momento que houver clima.

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